segunda-feira, agosto 29, 2005

Soledad

Soledad, este era o seu nome. Seus pais não eram espanhóis, tampouco descendentes. Sua mãe uma maria ninguém, seu pai um estivador, que nas noites de folga vagava pelos cais de onde quer que estivesse. E em uma noite qualquer, tão trivial quanto a sua própria existência, enquanto estava pelos braços das putas, ouviu em um tango desafinado a palavra Soledad, lembrou-se por um instante da mulher que estava em casa com a barriga cheia de uma menina, e ali, entre garrafas vazias de cerveja e bitucas de cigarro, decidiu que este seria o nome de sua filha. Mal sabia ele que o seu significado seria a única herança que deixaria para a primeira da sua prole.


Soledad cresceu com o estigma daqueles que só se revelam para si mesmos e em noite de puro breu, nem ela mesma se encontrava. Pobre menina que nunca se encaixara em nenhum conceito, ela não significava nada nem para ela mesma. Talvez as flores de seus vestidos de chita fossem mais expressivas, seu olhar morto e pesado não sobressaia das pálpebras magras. Não era bela nem feia. Era do tipo que ao passar por milhares de pessoas poderia atravessar todas elas, que, indiferentes de sua presença, seguiam suas vidas.


Soledad cresceu sem atrativos físicos, se chamou a atenção de algum homem, ele não ousou demonstrar isto para ela. Densa como as trovoadas em alto mar, ela foi se suportando dia após dia, houve até um tempo em que viver era um fardo difícil de carregar, nem o conformismo se apiedara de sua pessoa.


Soledad, um dia, preparou o jantar para seus irmãos que iriam chegar de viagens longas, como as de seu pai, falou com a mãe que iria comprar pão. Saiu de casa, na mão direita apenas o dinheiro e as chaves de casa. Ao atravessar a rua, naquele início da noite de uma sexta-feira, um carro dirigido por um bêbado encontrou seu corpo.


Soledad caiu no chão, e a poça de sangue que nascera em seu ouvido contrastou com a sua pele clara. Em volta daquele cadáver caído, de bruços, se amontoavam pessoas ávidas por cheiro de morte. Quando viraram o corpo que nunca tivera vida reconheceram a menina que carregou o estigma da solidão. E por ironia, foi depois de morta que seus olhos tiveram expressão de vida. Faltaram a Soledad os sustos...


(perdoem... não escrevi esta semana, e o texto acima não é meu... mas foi o primeiro que li - já tem um certo tempo - duma menina pra quem a intensidade é mais intensa... o vermelho mais vermelho... o amanhã é hoje... e o hoje tem a urgência do agora. e pra quem o sangue, como não poderia deixar de ser, não flui vagarosa e compassadamente, mas escorre em filetes desconexos, como o faria num suicida.)

7 comentários:

Leonardo Caldas disse...

Olho muito tempo...

(Ana Cristina Cesar)
Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

Vinicius disse...

Poxa,

que texto lindo. Triste e lindo. Só que a beleza não escolhe a alegria ou a tristeza. A beleza é e ponto final.

Diógenes Pacheco disse...

Andar por andar, nem por ir. É mesmo assim.

[]´s

Anônimo disse...

"Faltaram a Soledad os sustos..."

Intenso e belo texto...

Bravo pra você que nos trouxe a Soledad e para a menina que a pariu!

Marina disse...

Muy belo!

Adorei o poema da Ana Cristina César...

=**

Anônimo disse...

oi leo tudo bom? ja melhorou? consegui um tempinho aqui e to lendo os texto :D
muito bom esse! tadinha da Soledad cheguei a sentir um pouco de pena dela!

mg6es disse...

Um quê de Macabeia há de se notar em Soledad... esta uma estrela com hora marcada para apagar...

belo!
:*