terça-feira, abril 29, 2008

Mil novecentos e oitenta e dois...

Era um desses domingos à tarde preguiçosos, assistindo Faustão, com o bucho cheio do Bobó de Camarão e do Vatapá de Dona Lurdinha.
Julinha, a neta, senta no sofá ao lado do avô, Seu Joca. Julinha tem lá seus trinta e poucos anos, e o avô passa dos oitenta, "mas com carinha de setenta e nove", dizem as netas.
Ela pousa a mão sobre as costas do avô, num gesto de afeto, e assim fica por alguns momentos, eventualmente acariciando-lhe sob o pescoço. Seu Joca, distraído, aceita a carícia, permanecendo com sua atenção voltada para a tevê.

- Ê, Vôzão!
- Diga, minha filha...
- Grande ano, hein? Mil novecentos e oitenta e dois...

O avô estranha um pouco, visto que estão beirando maio de dois mil e oito.

- Oitenta e dois, Júlia? O que é que teve?
- Ôxe, vô! Só tô dizendo que foi um grande ano! O movimento pelas diretas... E o senhor lembra da seleção?
- Eu até lembro. Era o time de Telê. Grande time! Acabou que perdeu para a Itália, por infelicidade. Mas você tinha oito anos e não estava nem aí para futebol...
- Ah, vô... Mas eu reparava um pouquinho...

A esta altura, Seu Joca tinha um ar desconfiado. Não olhava mais para a televisão, mas diretamente para a neta. Por um momento, ficaram os dois em silêncio.

- Sabe aquela galinha de vidro, que fica na estante do corredor?
- Sei, sei! Foi presente do...
- Do Coronel, não foi?
- Coronel Albuquerque! Ele e a esposa presentearam a mim e à sua avó, num jantar que demos quando eu fui promovido a Capitão.
- Quebrei...
- Ué? Não ouvi barulho nenhum?
- Foi em oitenta e dois...

O avô a encara um momento, se levanta e busca a galinha na estante. Examinando com atenção, percebe que o pescoço está colado e que há uma pequena lasca sob a asa direita. Volta-se para a neta.

- Em oitenta e dois, minha filha?
- É, vô! Mas eu não agüentava mais carregar esse segredo comigo...
- Agüentou por um bom tempo, hein?
- Olha: foi sem querer! Eu peguei da mesa de centro para colocar num lugar mais alto, porque Jana era pequena e estava querendo pegar para brincar. Aí acabei derrubando...
- Ê, menina desastrada! E é assim até hoje, né? Cê sabe que não tem importância, não, né?
- Sei, vô. Só precisava contar...
- Dá cá um beijo, minha princesinha!

Ela beija a bochecha do avô como fazia quando era pequena. O velho coloca a galinha de lado, no móvel ao lado do sofá, passa o braço sobre as costas da neta e volta a atenção para a televisão.

- Ê, Seu Joca! Vôzão!
- Ê, minha menina...
- ...
- E noventa e um, vô? Grande ano, hein?


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