quarta-feira, novembro 30, 2005

O Papa não poupa ninguém


A Igreja Católica é chantagista. Seus dogmas são retrógrados. Ela parou no tempo. Excetuando-se a inquisição, nada mudou em séculos; e diga-se inquisição plena, porque a caça às bruxas seguiu velada em atos paridos nos concílios fechados. A chantagem-mor é a idéia do pecado, é a imposição do castigo a quem comete seus erros. A Igreja não peca! Impoluta, imaculada, seus quadros são puros pastores, e raramente o joio vai junto ao trigo, num lapso do separador. O católico não deve se separar, pois se casou e não deu certo, deve seguir no seu lar infeliz, criando seus filhos infelizes, com sua esposa infeliz. O Vaticano já classificou a AIDS como uma “patologia do espírito”, e segue orientando o seu rebanho a não usar camisinha, com o intuito de preservar a vida acima de tudo. O aborto é terminantemente proibido, e se, uma mãe tiver a infelicidade de gerar uma criança acéfala, esta deve esperar até o “nascimento”, ou, sofrer nove meses à espera de um filho semi-morto. Para o mundo cientifico as células-tronco podem salvar milhares de vidas, mas, para a Igreja isso não pode ser permitido, posto que a origem da vida está no próprio esperma. E enumeraria aqui outros fatores que demonstram o não acompanhamento dos dogmas à evolução do mundo, mas ficaria cansativo.

Atualmente o celibato tem sido duramente criticado por quem tem uma visão sensata sobre a origem dos escândalos sexuais. Cristo deu a outra face, mas, seu representante aqui na terra não cede. A proibição de qualquer tipo de relação afetiva para um padre é uma porta aberta à transgressão. O proibido excita, incita ao desobedecer. A nova discussão é sobre outra regra, a de os homossexuais serem banidos de seus quadros, ou, melhor dizendo, serem banidos antes de entrar para os seus quadros. Quando na verdade, se a própria Igreja seguisse o mandamento que diz para se amar ao próximo como a si mesmo, e respeitasse as diferenças, toda crítica seria castigada, e com razão.


Cresci católico e ia à missa de domingo por pura obrigação, esperando ansiosamente pelo grand finale “Vamos todos em paz, e que o Senhor vos acompanhe...” entre bocejos e cochilos, e breves espiadas no missal. À noite, mecanicamente repetia um Pai-nosso e uma Ave Maria às pressas, tudo para não ser um pecador, e nem ir para o inferno. Um dia, a minha vida virou de ponta à cabeça. Envolvido num grave acidente, tive uma experiência insólita, a de sair do próprio corpo, e por uns instantes visualizei tudo em minha volta, mergulhado num branco indizível, e num silêncio sem par que deve ser o da morte. A partir daí eu conheci a Doutrina Espírita, e logo me vi devorando O Evangelho e O Livro dos Espíritos de Kardec, onde encontrei respostas e contradições que não tardaram a se dissipar. Foi aí que passei a rever o sinal da cruz, pois como Jesus ressuscitou, devo lembrar dele vivo, e não preso à cruz, portanto faz-se desnecessário outro ato mecânico que tenho pra mim foi criado pela igreja para deixar claro que o sofrimento existiu, e que por isso devemos ter pena de Jesus, e ódio dos seus algozes. Como na Ordem dos Templários, como na Inquisição, a Igreja fomenta o medo, e pune o “pecado” com a dor. E assim, de católico não-praticante passei a crítico por sensatez.

A vida normal segue aqui, fora dos muros do Vaticano, com seus atropelos diários. Lá dentro, num mundo de ostentação e mordomia, o intocável Papa com seu status de semi-deus dita as regras a serem seguidas pelo seu rebanho. Ele ama ao próximo como a si mesmo, contando que este seja contra o aborto, não use camisinha, e faça sexo com a única e exclusiva finalidade de procriar, e por isso, jamais com parceiros do mesmo sexo. Enquanto isso, na casa ao lado, seminaristas se masturbam ou comem uns aos outros, padres quebram o celibato, violentando adolescentes e afins. Até quando esse falso moralismo?




domingo, novembro 27, 2005

Ser, estar. Ter, Haver

Se não fosse não seria. Mas como é não posso deixar que seja. Já que não fui além do que deveria, tenho que tentar ser o que não poderia, porque ser o que se é, é viver eternamente acomodado. Vou ousar para saber que ser é mais do que estar e ter, mais do que ser. Porque nos dias em que estamos, não temos o que queremos, mas somos o que temos.

E se não somos aquilo que querermos, sejamos aquilo que sonhamos. Porque sonhar só é bom acordado, porque ninguém vive dormindo. Mas que seja! Não sou apenas aquilo que como, mas, em especial, o que dejeto. E o oposto disso é deixar de pensar, porque só existe quem pensa e quem pensa, dejeta no mundo sua alma e seu lamento. Então sejamos o dejeto e o lamento, mas sejamos.

E se ainda não somos aquilo que pretenderam, sejamos aquilo que queremos. Mesmo que querer seja mais difícil que realizar. Porque quem quer, acaba só querendo. Ou então, deixa passar o querer, mas também não dorme com prazer. Então queira, queira e sonhe. Seja e deseje.

E se você, covarde, não sabe aceitar o seu desejo, lamente. Porque lutar contra si é brigar com um Deus impiedoso e cruel. Só se vence uma guerra lutando com o conhecido. E não mude o desejo nem faça de si um troféu, num lampejo. Mas seja como for, não deixe de ser aquilo que você pensou que não seria. Porque ser só é fácil quando se tem paz em si para viver consigo aquilo que se é.

E são as suas idéias que determinam aquilo que você tem. Porque na filosofia você tem o que quer. E o que não quer. Então só queira aquilo que você não pode ter. E seja marginal de si, roubando sua tristeza e a alegria dos outros. Porque é sendo egoísta que se ganha esse jogo.

Ser, estar. Ter e haver. Se há entre eles, uma relação, não me complique. Porque eu sou aquilo que eu quero, com um pouco do que não quero. Mas estou querendo ser aquilo que não sou, para ter o que não tenho. E se não há relação entre as idéias, é porque você também não sabe o que quer, o que é, o que tem, onde está e eu não sei onde encaixar o haver, mas você há de saber...

quinta-feira, novembro 24, 2005

Escrever.

Juntar idéias interessantes em função de uma idéia principal, original ou não. Traduzi-las para sinais gráficos e registrá-las para diversos fins.
Elementos não nos faltam, hoje em dia: não precisa ser nada intelectual, com essa sociedade da informação, a cultura cosmopolita...
Talento é para poucos, e me falta. Estilo vai de cada um. Vontade é um artigo raro, mas me sobra.
Tempo, que é bom, é que são elas...

[]´s

quarta-feira, novembro 23, 2005

Teatro dos vampiros


Sou uma espécie de telespectador forçado. Não, não odeio a televisão em si. Fato é que, por via das circunstâncias, atualmente divido o quarto com minha mãe, e, estando lá, impera a Globo em tempo integral para o seu bel prazer. Ela merece. Tudo bem que há os programas tragáveis, como o Fantástico, Altas Horas, os telejornais (apesar da parcialidade velada), e as novelas, que me fazem rir. Já fiz a experiência de desligar a minha tv, e consegui. Foi assim que descobri que um bom livro, uma boa conversa, ou um pequeno rádio me bastam, com notícias, e, claro, músicas.

Da Globo em si tenho certa reserva, mais por conta da sua sede de disseminação que por outros vícios. Lembrar que o maior coronel da Bahia, ACM, detém seu poderio sob sua chancela me enoja. Saber que esse poderio teve berço no regime militar e se consolidou com sua gestão como ministro das comunicações de Sarney. E mais: saber que sua afiliada na Bahia serve de base para o curral do dito politiqueiro, me enoja muito mais.

Aqui, debaixo do meu nariz tenho a Gazeta de Alagoas, afiliada pertencente ao não menos famigerado, Collor de Mello. A origem deste poderio, diga-se, vem de bem antes, quando Roberto Marinho ainda engatinhava nesse pântano. Assis Chateaubriand que o diga. Verdade é que o senhor Arnon de Mello, pai do dito, também foi político, medíocre mas foi, visto que seu ato mais vultoso foi o assassinato de um outro senador dentro do plenário, em Brasília, na frente da família do mesmo. José Kayrala, senador pelo Acre, fazia seu discurso de despedida. Arnon, entrou no plenário armado para atirar num seu desafeto, o senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro, errou o tiro e matou Kayrala. Hoje a Gazeta faz as manobras políticas locais para agradar seu comandante. E pertence ao grupo um jornal habituado a atropelar a língua pátria.

E assim, entre um intervalo e outro, foi que me deparei na segunda-feira passada com uma reportagem digna de aplausos, porém, muito menos pelo veículo, já que fazia seu papel “social”. Trata-se de uma iniciativa do Comando Militar do Nordeste, sediado em Recife, com o intuito de levar às populações carentes, um pouco de cidadania palpável. Junto com alunos da UFPE, os militares realizam exames médicos de toda sorte, fornecem remédios, documentos, perfuram poços artesianos, e, fazem até casamentos. A própria Globo faz isso com o Sesi, mas, o interessante foi ver o Exército fazendo isso, o que, num país de paz (e de fome) como o nosso, é muito mais proveitoso que gastar milhões em operações fictícias. Conheço bem a estrutura física do CMNE, posto que prestei serviço militar obrigatório num quartel que fica na mesma área do mesmo. E pude ver algumas vezes, nos quintais extensos e sombrios, alguns “alojamentos” que serviram de “apoio” ao DOPS em Pernambuco, num tempo em que o Exército matava, ou batia nos filhos deste solo. Hoje ele assopra. Já não era sem tempo.

Ps: A única cidade escolhida pelo projeto em AL, Senador Teotônio Vilela, tem um IDH vergonhoso, porém, ostenta o nome de um ícone da democracia, e que deixou um filho homônimo, e também senador, mas, que talvez não tenha tempo para se envergonhar disso.


segunda-feira, novembro 21, 2005

Dia de greve

A noite ainda nem tinha virado dia, e já era grande a movimentação na casa do João. Mas todo dia era assim... Os primeiros sons que escutava eram sempre os das panelas batendo umas nas outras na cozinha, e da água enchendo as panelas, apesar de todo o cuidado que a Maria tinha em não acordá-lo mais cedo que o necessário. Casa-quase-barraco, paredes finas e quarto colado ao arremedo de cozinha. E logo em seguida aos sons vinham os cheiros... Do café quente misturado ao do feijão ralo, que ele comeria no almoço com arroz branco e a invariável sardinha frita. E mais algum pedaço de qualquer coisa que a Maria, com sua criatividade amorosa, sempre inventava de magicamente fazer aparecer em sua marmita. Era o cardápio de todos os dias. Obviamente, engolido frio. Ou de outra forma não carregaria, ele e outros tantos companheiros de sina infeliz, a alcunha de bóias-frias.

João sai vagarosamente da cama. Afinal, a última coisa que iria querer é acordar um dos meninos, espremidos no colchão ao lado do que ele próprio dormia. Levantavam um pouco depois dele, pra ir à escola comunitária. Fez a rápida oração diária, imaginando mais que vendo as formas do santinho no ambiente quase sem luz do quarto, e saiu. Hoje era dia especial. A reza tinha de ser caprichada. Ao ver as horas, notou que acordara cedo demais... ainda teria uns minutos sobrando. Sentou-se no banquinho de madeira ao lado da mesa, e iluminado pela réstia de luz vinda da cozinha, começou a olhar em volta. A casa de 2 cômodos nunca parecera tão minúscula, pobre e mal-cuidada... e pensar que mesmo o aluguel dela ele teria dificuldades pra pagar no final do mês. As despesas no armazém do povoado aumentando também... e o material escolar dos meninos... A tv com defeito...donde tirar o dinheiro pra consertá-la? Ligou o radinho a pilha e começou a escutar baixinho a rádio local. O locutor, animado, comentava que a safra dos canaviais deste ano prometia colheitas recordes! Como se isso fosse mudar o que quer que fosse na vida dele ou de qualquer dos outros cortadores de cana da região...

E vieram à mente do João, num turbilhão desencontrado de cenas, a chegada do pessoal do sindicato uns 6 meses atrás. Gente danada de atinada aquela! Meninos tão novos, e no entanto falando tão bonito, coisas boas de ouvir. Muitos deles filhos de gente dali. Afinal, não era o menino do cumpadre Getúlio (que o João vira nascer, ali mesmo na roça ao lado da sua) um dos mais inflamados? Falando de como eles eram importantes, e da relação deles com a terra. Da exploração diária de seu trabalho a que estavam sujeitos pelos patrões. Falavam da necessidade de assinar suas carteiras... em melhorias trabalhistas... e tanta coisa que dava gosto! Muita coisa o João nem mesmo entendia. Homem de poucas letras, acostumado ao vocabulário monossilábico da enxada, lhe era muito difícil entender toda aquela filosofia. Ainda mais depois de um dia inteiro debaixo de sol a pino, com cana lanhando o corpo. Mas daí olhava meio de soslaio em volta e percebia as caras atentas, parecendo entender tão pouco quanto ele próprio, o início de sorriso aparecendo em algumas das bocas desdentadas, a desconfiança em outras. E as coisas que os meninos falavam, igual ao cheiro da cana logo em início de safra, foi se alastrando. E tomava conta de tudo. E aos pouquinhos os trabalhadores se perguntavam do porquê de serem obrigados a comprar nos armazés que os patrões mandavam... e as jornadas de trabalho? Precisavam mesmo ser tão longas?

E os usineiros? Os usineiros haviam sabido das tais reuniões. E tomavam providências. João bem que percebera que os forasteiros caladões que vinham aparecendo ultimamente nas reuniões andavam armados. Nem tentavam mais disfarçar, arrotando valentias entre os grupos de trabalhadores. E ainda assim os sindicalistas decidiram. A situação estava impraticável e, pra demonstrar força, os cortadores precisavam parar. Greve? João nem sabia direito que diabo era uma greve... E o patrão lá ia querer saber de bóia-fria preguiçoso, que fica parado de corpo mole? Mas tanto fizeram os meninos do sindicato, e tanto falaram, e tanto conversaram, que cá estava João, a ponto de participar de sua sua primeira greve. Não comentara com a Maria. Criatura simples, Maria sempre implicara com o menino do Getúlio, "moleque mais cheio de prosa, que só quer saber de farrear". Seria difícil fazê-la entender o que era a tal da greve, ainda mais quando ele próprio estava tão incerto ainda. João tinha 57 anos... Matuto sem instrução, batalhara a vida inteira no cabo duma enxada, ajudando desde cedo o pai na lida (outro pobre coitado igual a ele). E o que conseguira com isso? Calos nas mãos agora já meio fraquejantes, o cansaço no corpo surrado por tanta privação, e nada mais? E essa tal dessa coisa que esse pessoal inventava agora? E se não dá certo? Ser posto pra fora desse pedacinho de terra a essa altura da vida... e se não...

- Pai.
- Oi filho. Já acordou? Nem tinha te visto aí! Tava aqui matutando um pouquinho.
- Vai pro canavial hoje não, pai?
- Vou sim... Esperando tua mãe preparar a bóia. Que é isso?
- Livro que a professora mandou a gente ler, pai. Olha só que bonito!
- É... bonito, né? (João, que estudara até a quarta-série primária, já esquecera há muito das letras...)
- Quem escreveu foi um homem chamado Graciliano Ramos, meu pai. É bom ele! Fala de gente como nós, sabe? Eles tem uma cachorrinha, e tem de sair das terras deles. E a professora disse tanta coisa pra gente.
- E o que ela disse?
- Ah... falou da importância de se ter sonhos, e de ter respeito pelas pessoas. E de como quase sempre as pessoas que tem muito tomam de quem quase não tem, como nós.
- Ela disse isso?
- Disse sim... danada de boa essa professora! Ela fala tanta coisa pra gente! E eu tô gostando tanto do livro... E ela falou também que vamos ler mais livros desses daqui pro final do ano.

E João lembrou do pequenino, ainda outro dia um moleque andando nu pelo terreiro em frente à casa, correndo atrás das galinhas. E agora ei-lo ali, falando como gente grande, e até lendo livros! E o menino começava a entender o mundo. E João o queria na escola. Era lá que ele leria mais dos tais livros, e era lá que ele entenderia coisas pras quais ele mesmo, o João, só agora tomava tento.

E é por ele, o pequeno, que João pega num canto da sala seu podão e a marmita, dá um abraço carinhoso na mulher, envelhecida pelas agruras todas que viveram juntos, e com o sorriso que tem a beleza simples dos que trazem consigo a razão, sai pra sua primeira greve. E que viessem os cabras intimidadores... e que viessem tantos usineiros quanto quisessem...

domingo, novembro 20, 2005

A fonte está secando

Coisa mais estranha essa do processo de criação. Já se vão algumas semanas em que tento escrever alguma coisa que preste, mas me faltam as palavras e uma idéia, mesmo uma não original.

Não sei realmente por onde começar o texto. Gostaria muito de pensar em qualquer coisa. Minhas viagens pelo Brasil? Costumes e culturas distintas dentro desse país continental? Que tal falar sobre as comidas diferentes que comi em cada canto do país? Esse parece um tema interessante, mas não sou bom nisso, já que estou em regime e tenho comido só o básico mesmo.

Falar das coisas que eu vejo no avião também parece uma coisa interessante. Indo para Fortaleza viajei com um piloto cujo nome era JOTAERRE, escrito assim mesmo e em letras garrafais. Uma figura única. Na porta do avião, ele cumprimentou cada passageiro. E o melhor é que ele era uma mistura de Wolverine, Nazi e Elvis. Costeletas exclusivas ele tinha.

E eu vi Fagner nesse vôo, sentado numa fila antes de mim. E eu não sei porque razão, assim que sentei em meu lugar lembrei da música “Borbulhas de Amor”. E resolvi cantar, imitando o próprio Fagner, fazendo as caretas e tudo mais. E eu estava lá todo empolgado, olhando para baixo e cantando baixinho, quando percebo ao meu lado um homem de pé. Quando olho para cima, como se fosse mentira, vejo o próprio Fagner olhando para mim e sorrindo. Apesar de não saber onde meter a cara, ele foi muito simpático e gentil...

Poderia falar em Sidney Magal tentando (e conseguindo) a qualquer custo um lugar na classe executiva. Cara de pau o Magal... Quem sabe falar da minha experiência no Beach Park, mas agora completamente? Não sei, acho que não dá pra traduzir em palavras a emoção que a gente sente.

E as mulheres? O Rio Grande do Sul é uma passarela disfarçada de Estado. Em Fortaleza fiquei um pouco triste, porque o número de prostitutas que encontramos nos bares, boites e casas de espetáculo é muito grande. No Rio as mulheres são muito saradas. Bonitas, bem produzidas e bastante saradas. Aqui em Belo Horizonte elas são mais discretas e tímidas.

Falar da noite de cada cidade dessas também é um caso à parte. Em Salvador precisamos chegar em casa às 2:00 da manhã, porque tudo acaba. Já em Porto Alegre, você tem que sair às 2:00 da manhã, porque antes disso não tem quase nada. Em Fortaleza é uma mistura deliciosa: num mesmo espaço você tem um palco com forró, 4 ou 5 boites tocando estilos musicais diferentes, restaurante, bar. Coisa para inglês ver. No Rio é tudo muito caro e você corre o risco de não entrar na balada, caso não seja escolhido na fila. Absurdo. Mas claro que isso não acontece em qualquer lugar...

Mas eu ainda não sei sobre o que falar. Já vai o segundo ou terceiro domingo consecutivo e eu não sei o que escrever, não tenho nada pra dizer.

Preciso começar a escrever logo alguma coisa, antes que chegue o próximo domingo e eu não tenha nada para falar.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Último romance

Era ali, no final da Rua da Luz, sob o número 98, que morava o senhor Baltazar de Castro. Sua casa era um antigo sobrado com alpendre lateral, cuja frente ostentava um belo e bem cuidado jardim com suas begônias, avencas e gardênias; tarefa que cabia ao proprietário executar, e que o mesmo fazia com esmero e prazer. Era comum passar à frente de sua casa todas as manhãs e vê-lo na sua terapia. Seu Bal, como era conhecido no bairro inteiro, morava sozinho há quase vinte anos, desde que enviuvou, ou, como ele mesmo falava, “quando metade do meu sol se pôs”. Dona Henriqueta partiu quando o marido tinha sessenta anos, e enquanto juntos, sempre foram exemplo de companheirismo e amor para todos. Era muito comum encontrá-los de mãos dadas a passear nas ruas daquela pacata cidade, ou na missa dominical. Ao divertimento guardavam o sábado à noite, onde assistiam a algum filme no cinema Apolo. Ele em seu porte atlético de nadador costumaz, e ela em sua delicadeza de moça bem criada, eram admirados ao passar. Não tiveram filhos, e viveram juntos quarenta anos, até que o coração dela parou. Abatido, seu Bal ficou meses recluso, era visto raras vezes no jardim, num desleixo só. Barba por fazer, cabelos por cortar. Segundo um seu criado, estava padecendo de uma febre quartã.

Um belo dia, numa quarta-feira de uma primavera tardia, já passando das sete da noite, eis que surge no portão seu Bal. Devidamente trajado num conjunto de terno branco em linho, gravata da mesma cor, um belo chapéu de Panamá, um cravo na lapela, um lenço todo embebido em água de colônia; cruzou o portão numa mudez gritante, e seguiu a rua imune a olhares e cumprimentos. Incrédulos, os vizinhos o viram dobrar à direita na esquina da rua da Luz com a Visconde Negro, era o baixo meretrício. Lá chegando, foi bem recebido pela dona da casa, que lhe pôs numa mesa confortável e lhe trouxe umas meninas. Seu Bal tomou um gym puro, escolheu a mais novinha e subiu para o quarto. A partir daquele dia, pelos próximos vinte anos, deu-se o ritual das quartas-feiras à noite. O bairro se acostumou àquela cena, e sua passagem no dia tal, já virara até referencial de dia e hora, “hoje é terça ou quarta?”, perguntava-se, “hoje é quarta, seu Bal está vindo ali”, retrucava-se. E sempre o mesmo traje, a mesma elegância, a mesma mudez.

E assim foi, que numa quarta, justo dia 8 de novembro, quando completavam-se vinte anos do passamento de dona Henriqueta; seu Bal cruzou o portão. Seguiu o trajeto em sua segurança inquebrantável, como um autômato, dobrou na Visconde Negro, entrou no lupanar, tomou seu gym, pegou pelo braço a menina mais nova, e seguiu para a alcova mesma, desde a primeira vez. Despiu-se no escuro como sempre fizera, e no mesmo breu, fez ali o seu amor de plástico, e gozou como nunca havia, e virou-se pro lado, e ainda ofegante cochilou, e do cochilo refazedor enveredou pelo sono pesado, e do sono ao sonho foi um pulo, e lá, no portão da casa do sonho, estava Henriqueta, de mãos estendidas a sorrir, e ele sorriu, e em passos tétricos foi até ela, se abraçaram, e depois de um longo beijo seguiram pela rua da Luz e nunca mais foram vistos.

domingo, novembro 13, 2005

Insanidade

Hoje eu sinto meu corpo como nunca, porque tudo está doendo...

Acabo de chegar do Beach Park, no Ceará. Fui em todos os "brinquedos" e deixei por lá muita energia. Até digitar é impossível, pensar então...

Só digo uma coisa: se você tiver a chance de ir ao Beach Park, não deixe de ir ao "Insano". São 41 metros em queda praticamente vertical. Olhando do chão, a coragem falta, mas lá do alto não pense em nada: apenas se jogue. São os 4 segundos mais longos da vida de qualquer um.

Agora vou dormir. Semana que vem tento escrever algo.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Monotonia.

O Homem de Senso de Humor Peculiar, cabisbaixo, andava arrastando os sapatos no chão da Cidade Cinzenta e Sem Graça. Como sempre, chovia - pouco.
As calçadas meio sujas, mas nem tanto, deslizavam sob os sapatos com uma resistência média, fazendo um ruído rouco, nem alto, nem baixo.
Ele olhava para o chão, olhava para o céu... Evitava olhar a qualquer altura ou direção em que fosse arriscado um cruzar de olhos com qualquer pessoa insossa, destas tantas que haviam na cidade.
Quando olhava para o céu cinzento, esperava no íntimo que tropeçasse em alguma coisa, ou pisasse num buraco. Quando olhava para o chão, talvez pudesse esbarrar em algo ou alguém vindo rápido, ou bater o topo em alguma coisa. Mas ele sabia que a Cidade Cinzenta e Sem Graça não tinha buracos e nem paralelepípedos soltos, nem gente correndo, nem nada tão fora do lugar para acertar-lhe o alto.
Entrou no seu carro, de cor fosca acinzentada, ligou o motor fraco e silencioso, e saiu pelo trânsito livre das ruas lentas de pista única. Olhava com um fundo de desejo para todos os cruzamentos, junções e curvas, acreditando que alguém pudesse se atrapalhar, ou vir um pouco rápido, e bater o carro nele. Já tinha praticamente um script, involuntariamente criado em seus momentos de tédio ao volante: sairia do carro e diria com olhar conclusivo: "O carro bateu?", numa expressão de inteligência. Por dentro estaria rindo sozinho, mais que o necessário, de tanta saudade que tinha de uma tirada burlesca.
Mas naquela cidade as ruas tinham radares de velocidade, as coisas não eram perto nem longe, as pessoas saíam num horário razoável, e a sinalização de trânsito era suficiente, em suas placas desbotadas.
O Homem de Senso de Humor Peculiar buscou sua namorada, que ele não amava mas estava acostumado, a Mulher de Saias no Joelho e Coque. Se adaptara à sua rotina.
Foram para seu apartamento no terceiro andar.
Jantaram feijão com arroz, fizeram sexo na posição papai-e-mamãe, uma vez. Ele gozou pouco, ela não gozou, mas disse que foi bom mesmo assim. Dormiram de pijama e meias, depois de passar Vick Vaporub.
O Homem de Senso de Humor Peculiar sonhou com quadros de natureza morta, acordou ao ouvir ao longe uma gaita de foles, olhou para o céu nublado e, num impulso de desespero, gritou pela janela: "VIDA!", e baixinho, arrematou "que caralho...". Mas não riu.
E ninguém pareceu ouvir, e a Mulher de Saias no Joelho e Coque o chamou para tomar seu café com leite e pão, enquanto ligava a tevê no jornal.

[]´s

quarta-feira, novembro 09, 2005

Maurício


Maurício andava cabisbaixo, a divagar frente à televisão. Ao fim do telejornal mal sabia a previsão do tempo lá fora, e tampouco dava conta do nevoeiro interior que estava por vir; nem notava o novo cabelo da apresentadora, ou seja, estava ali o seu corpo, como numa missa de corpo presente, mas a essência vagava por mundos insólitos. Já não assistia aos seus programas preferidos, e futebol nem pensar. Maurício, de longe não era mais o mesmo. No trabalho fora chamado à sala do chefe por motivo de atraso e desatenção. Os colegas incrédulos assistiam àquilo sem compreender nada. Diziam pelos cantos que o amigo poderia estar padecendo de algum mal, mas sequer tentavam falar com ele, que fechado em copas estava desde então. Sorriso naqueles lábios era coisa rara, exceto algum esboço perdido, desses de quem lembra de algo bom no meio de um pensamento qualquer. Mas, bastava ser percebido por alguém, e ele logo fechava a cara. Semblante duro, sisudo tal qual um inglês, este era o Maurício da vez. No refeitório era um lanchinho e só; não se demorava, e no cafezinho nem mais pisava. Virara um avesso a conversas de todo tipo, e sobre trabalho apenas o essencial. À noite em casa, vinha o suplício, após “não” ver televisão ia deitar-se, leia-se literalmente. Deitava sim, mas o cérebro não mais reconhecia essas informações: noite, deitar, dormir. Rolava na cama de olhos no teto. A calma só chegava quando então ele passava a recapitular os melhores momentos vividos ao lado dela. Pois é, os colegas de trabalho mal imaginavam, mas o jovem Maurício andava a perder-se loucamente em pensamentos pela doce A... bem... o rapaz era muito discreto nesse ponto. Nesse momento o seu corpo entrava num estado de paz, e o rolar característico dos insones sumia. E lembrava de tudo, entre gestos, palavras, olhares, e até o seu cheiro; e fechava os olhos num devaneio sem fim. Criava no imaginário uma espécie de mundo perfeito onde a felicidade era a tônica principal. Ali, naquele lugar que só ele conhecia, além de sua amada, aconteciam as mais belas histórias de um amor sem par. Perdido naquele mundo o jovem esquecia do tempo e seu corpo experimentava as sensações mais puras de um grande amor vivido na plena perfeição. Mas..., a vida insiste em seguir seu curso, e sóbria, e logo ele via que tudo aquilo era sonho, e ao despertar, ao dar de frente com a realidade no escuro do quarto, vinha a lança afiada da verdade e ele sentia assim a mais cruel fisgada no peito, a dor lancinante do amor a sós, amor unilateral, do amor impossível. A lágrima era a véspera do choro compulsivo e silencioso; abafado entre mãos, como a se esconder de si mesmo. Maurício seguia assim até ser vencido pelo sono, e na mais infame das ironias, ao dormir sequer conseguia sonhar com ela...

domingo, novembro 06, 2005

O anticristo e seu exército de bestas-feras

Em tempos onde um beijo gay faz mais sucesso que nossos reais e eternos problemas sociais, que aliás já viraram instituição, um música não me sai da cabeça. Não sei se pela direta relação da música com a novela, ou se porque tenho ouvindo o autor todos os dias.

Aliás, tenho dividido meus dias entre Chico Buarque e Noite Ilustrada. Porque eu tenho mania de ouvir até cansar uma música, ou um disco: depende do tempo disponível. Atualmente vou trabalhar ouvindo Noite Ilustrada e volto pra casa ouvindo meu amigo Chico. Pra falar a verdade, vou trabalhar ouvindo "Minha Rainha". Não sei quem é o autor, mas a leitura de Noite Ilustrada para essa canção é linda e triste de se encolher (parafraseando o nobre Baiano). Chegou a ouvir 4 vezes seguidas e não consigo parar, porque hoje é a história da minha vida.

Mas voltando um pouco ao tema inicial, é incrível como vivemos numa palhaçada chamada sociedade brasileira. Antes de qualquer coisa, não sou contra nem a favor, gostou ou desgosto, defendo ou ataco, qualquer coisa, só porque eu penso igual ou diferente. Odeio ter opinião, porque acredito que ter opinião é copiar pensamento alheio. Eu prefiro crer que não sei nada e evito muita polêmica, assim me indisponho menos, já que aprendi que numa conversa você tentará inutilmente defender seu ponto e jamais convencerá o outro da sua certeza. Que seja, deixe-me voltar.

Como eu estava tentando dizer, não entendo porque essa palhaçada de beijo gay na novela ter virado o assunto do dia, do mês, do ano. E entendo menos ainda a revolta dos grupos GLBT (mais tantas letras que não tenho idéia), afirmando que não exibir a tal cena de beijo reforça ainda mais o preconceito ao homossexual.

Bom, eu pelo menos não vejo assim. Eu acredito que os homofóbicos ficarão com mais raiva por saber que está passando no horário nobre um beijo entre dois homens. Já os conservadores, pudicos e hipócritas em geral dirão que os valores morais, familiares e sociais estão se perdendo. Aqueles que não estão nem aí para nada assim permaneceriam. Os membros ou simpatizantes desses grupos cheios de letras, que cada dia ganha mais membros e letras, ficariam felizes, seguramente. Mas a pergunta é: até onde a exibição de um beijo mudaria alguma coisa? Será que vale a pena mais essa auto-afirmação, como se fosse necessário estar o tempo todo mostrando de todas as formas que os gays existem e precisam ser respeitados como tal, blá blá blá?

Eu penso que aqueles que acham que o amor entre pessoas do mesmo sexo é errado, vão de encontro a Deus, mesmo usando seu Santo nome como argumento para não aceitar essa diferença, que no fundo não faz diferença.

Porque Jesus veio à terra enviado por Deus para mandar uma mensagem de amor aos homens. E ele ensinou que todos os mandamentos se resumem em apenas um: “amar a Deus acima de tudo e próximo como a si” ou qualquer coisa assim. Então achar que o amor entre iguais é pecado e errado vai de encontro ao resumo dos mandamentos, que é o amor.

Mas não estou aqui para levantar estandartes nem pintar um arco-íris na cara. Só acho que temos mais coisa para fazer do que se preocupar com beijo de novela. O anticristo acaba de chega com seu exército de bestas-feras. Enquanto estamos nós pensando em beijo gay e na próxima novela das 8, nossos hermanos estão “tocando horror” mais pro sul.

Bom, escrevi um monte de coisas e não sei como terminar o texto. De qualquer forma vou deixar vocês com a música que não sai da minha cabeça.

Iracema Voou

Iracema voou para a América
Leva roupa de lã e anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
Tem saído ao luar com um mímico
Ambiciona estudar canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará, mas não muita
Uns dias afoita me liga a cobrar
É Iracema da América

Chico Buarque

quinta-feira, novembro 03, 2005

Dos Gerais.

Dava passos rápidos sobre suas velhas sandálias de couro, inexatos pelo peso do fardo que carregava no lombo. Sua pouca magreza era protegida do sol impenitente pelo grande chapéu de palha, e pela velha e já amarelada camisa branca de mangas compridas. Sob a calça suja de terra, dobrada até perto do joelho, o suor escorria, misturando-se com o barro e transformando-se em lama.
O caminho à frente era mesmice e desalento, tudo que se via era chão seco e céu, para a frente e para trás. Ele pensava que de vez em quando podia ter menos um toco de árvore, ou uma pedra grande, ou quem sabe um morro, para ele saber que andou um tanto até chegar nele e outro tanto até o morro sumir de novo.
Lá pelas tantas, com o sol a pino, ele vê ao longe a estrada.
Aperta o passo quanto podem seus joelhos cansados, chega na estrada. Anda mais um pouco até um velho abrigo de taipa ao lado da pista. Lá, com cuidado, põe à sombra sua carga, e trata de se limpar quanto pode sem água. Atenta para a estrada, senta ao lado da trouxa, espera.
O tempo cresce de um jeito assustador quando se espera por ele. Ele só pensa que a qualquer hora passa um caminhão. Carro pequeno não para. Tem que ser caminhão.
E o sol desce aos poucos, trazendo consigo a brisa da tarde, esfriando suas roupas encharcadas de suor. Faz frio. Ele sente o torpor do cansaço, mas não pensa em nada - mantém os olhos fixos na estrada.
Passa um carro pequeno rápido. Ele abana o chapéu, mas o carro não para. Pela primeira vez em horas, meio que sem querer, sai um som de sua garganta.

- Aara! Ôooux!

Volta e senta no mesmo lugar, e espera. E quando se percebe dando cabeçadas de sono, prestes a não suportar, canta uma música.
“O Senhor é o meu pastor / E nada me faltará / Nada me faltará”
O sol vai quase se pondo. Passa um caminhão, ele abana o chapéu e nada, e não tem nem tempo de pensar, vê outro apontando lá de longe na estrada.
De impulso, corre até o abrigo, volta com uma mulher nos braços, e fica no meio da estrada. O caminhão, de longe, dá luz, mas ao chegar mais perto, apaga o farol, diminui a velocidade e pára.

- Que é isso, sô?
- Minha esposa tá doente, senhor! Pelo amor do nosso Senhor Jesus, o senhor pode levar a gente até a cidade?
- Uai! Entra logo no caminhão, sô! Que é que ela tem?
- Eu não sei não, moço. Ontem à tarde ela começou a desmaiar. O menino me contou de noitinha, quando cheguei de volta do roçado. Andei a noite e a manhã para chegar na estrada.
- Sêo trabalha onde?
- É nos gerais, sim senhor.

E ao falar isso, sentiu uma tristeza doendo fundo no peito, uma lágrima se formou no seu olho, mas ele não deixou ela descer.

- É só o que eu sei fazer, sabe, moço. Mas é muito ruim. Quando a mulher e o menino adoecem, quem cuida?
- E o menino? Ficou com alguém cuidando?
- Não precisa não, não senhor! O menino tem dez anos já. E fica com o trabuco, pra se tiver precisão.

Ajeitou a cabeça da mulher no colo, sobre um pedaço arrancado do pano com a qual a carregara, colocado cuidadosamente para que ela não se molhasse com suas roupas encharcadas.

- O senhor se importa se eu perguntar sua graça?
- Meu nome é Clébson. E o seu, meu amigo?
- José dos Santos Honrado, ao seu dispor, sim senhor.

Clébson percebia o cansaço do homem, visível nos olhos fundos vermelhos e nas olheiras destacadas pela pele grossa.

- Dorme um pouco, sô! Já andou muito! É melhor guardar as energias pra lá na cidade.
- Agradeço, mas estou bem, sim senhor.

Disse isso e manteve-se olhando para a estrada, calado. Em menos de dez minutos, desmaiou para trás, com os braços cruzados e a cabeça na dobra do recosto.
Clébson tirou o pano que deixava sobre as pernas, para aquecer, e ajeitou sobre os braços do carona. Pensava consigo mesmo nesse povo dos gerais, quanto sofria, e pensava que não tinha jeito mesmo. Ligou o som baixinho e colocou o disco de Elis, tocando “Romaria”. Mal começou, tirou. Colocou Mercedes Sosa, cantando ”Los Hermanos”.
A lua era cheia e o céu estava limpo. Duzentos quilômetros de asfalto esburacado, ainda, até Jacobina. Cléber toma uma pílula para o sono, joga a marcha, e avança contra a ladeira.

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(Continua...)

quarta-feira, novembro 02, 2005

Um Drummond para os mortos

DEPOIS DO JANTAR

Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
— Não fumo, respondeu o outro.
Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
— Como?
— Já disse. Vai passando o relógio.
— Mas ...
— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
— Agora posso continuar?
— Continuar o quê?— O passeio. Eu estava passeando, não viu?
— Vi, sim. Espera um pouco.
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não acabei de pagar...
— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
— Não precisa, não precisa.
— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
— Claro.
— Você, o assaltado. Certo?
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
— Tá bom, não se discute.
— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
— Deixe ao menos tirar os documentos?
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
— Nem uma de quinhentos? Uma só.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha. Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.
Carlos Drummond de Andrade