quinta-feira, agosto 31, 2006

Política

Era domingo à noite, família reunida. Estavam todos lá até o papai que, por causa da chamada "política", quase nunca estava em casa. Todos saboreando uma pizza GG de calabresa e aquela sensação de nostalgia dos tempos perdidos de família reunida.

Em meio a conversas jogadas fora, a risadas, a histórias, papai se aproxima de mim daquele modo sutil, como quem quer alguma coisa. No meu ouvido, sussurra que quer falar comigo, a sós, no quarto dele. Temendo por ser algo que fiz, senti-me um pouco apreensivo quanto a essa conversa inesperada.

Entrei no seu quarto. Lá estava ele, imponente como sempre. Fumando um dos seus charutos preferidos e olhando para mim com o semblante sério. Mandou-me sentar ao seu lado e sem nenhum tipo de hesitação, proclamou:

- Você vai ser político, irá se candidatar esse ano.

Eu não esbocei reação nenhuma. Fiquei parado, atônito. Não esperava por essa. Político, eu? Nunca gostei dessa que roubava o meu pai de mim e agora ele quer que eu faça parte dela? Pensei seriamente. Não soube o que fazer, nem o que falar. Balbuciei algumas palavras antes de ser interrompido.

- Seu avô foi deputado, eu sou deputado e tentarei o senado esse ano. Está na sua vez meu filho, você já tem 21 anos, está na idade. Lançarei sua candidatura para deputado federal esse ano. Tenho bons marketeiros e um nome forte aqui no estado, além de uma bela aliança. Você irá ganhar facilmente. Já está tudo feito, amanhã iremos ao partido para você se filiar e eles lançarem a sua candidatura.

Não compreendi essa decisão do meu pai. Sempre odiei política, nunca gostei de ler. Na verdade, nem na escola eu era bom. Fiz um supletivo para terminar o ensino médio, faço o ensino superior numa faculdade particular. Não leio, não entendo de nada. Decidi, então, questioná-lo.

- Mas pai, como eu vou ser político se eu nem gosto disso?

Meu pai encarou-me sério. Olhou-me daquele jeito por cerca de dois minutos. O silêncio que cercava aquele intervalo de tempo me incomodava. Acendeu outro charuto e disse:

- Não se preocupe com isso. Quando se eleger eu te ensino tudo. Você será político e pronto menino. Se não, corto a sua mesada, tiro seu carro e paro de pagar a sua academia, ta me entendendo? Política ta na família e é a sua obrigação se candidatar esse ano.

Sem ter como reagir, candidatei-me, ganhei e estou aqui, sentado na cadeira de deputado federal no Congresso, em Brasília, representando milhões de brasileiros. Ganhando cerca de 40 mil reais por mês para apenas votar de acordo com o que meu partido ou pai me fala, fora os "extras" que de vez em quando sai. Ô vida boa.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Lugar Errado.

Não espere toda a sinceridade, todo o coração. É o lugar errado, e eu não estou aqui para declarações de afeto.
Não espere de mim ajuda, não espere um sorriso inocente, não espere ânimo, condução. Nem é bom esperar amor, ou, sequer, amizade.
De forma alguma precise de colo, carinho, afago ou perdão.
Não espere de mim constância, porto seguro, chave de casa, telefonema amanhã. Não me peça um cigarro e nem fogo.
Não espere doçura, e não tente apreciar o amargor.
Não espere que eu ria se não tiver graça. Não pense em cortesia, em modos britânicos. Não imagine, sequer, elegância ou sofisticação. Nem muita tolerância - talvez o mínimo, meio amarga, de quem entende.
Eu talvez não faça a barba, e talvez não esteja vestido adequadamente.
Eu talvez não esteja nem aí.
Talvez eu seja aquele cara que todo mundo tem medo de um dia ser, ou de na verdade ser. O que se perdeu dessa linha, e que achou, em um momento, que era tudo hipocrisia. E de lá para cá, não está nem aí.
Talvez, no fundo, eu até espere alguma coisa. Mas não espere de mim. Não tenho pressa, e nem quero nos meus ombros o peso de expectativas.

terça-feira, agosto 22, 2006

Para morrer aos poucos.


Outro dia eu estava conversando, mesmo contigo, de como existe essa tentação de falar, às vezes, sem ter o que dizer. Escrever coisas sem inspiração, falsos pensamentos, enfeites. Um pecado, na verdade. Quem realmente importa sabe o suficiente para ver o que você fez. Ou até, sem prejuízo aos olhos de ninguém, pode haver uma interpretação indevida, e as suas palavras vazias tomam um sentido qualquer. Um sentido que você não oferece e nem entende.
Outro dia eu estava lhe dizendo, mesmo, dessa nossa possibilidade de fazer sentido, lembra? De ter idéias juntos. E deixo aquelas coisas, novas, encostadas atrás de uma porta. Aquela sensação de que esquecemos de pegar algo, uma luz acesa em algum cômodo, um grito que te acordou e você não entendeu.
Eu me lembro como se fosse um filme que a gente só viu a metade, num mundo engraçado, desenhado, dançando. E o mundo real, como sempre, sem tempo para mais nada.
Aquelas coisas que a gente não resolveu naquela aventura em São Paulo. Aquele sorriso de canto de boca. Umas brincadeiras para o pensamento distraído, umas lógicas que vem como se do sul para o leste, num vento tranqüilo. Uns cigarros para morrer aos poucos, loucos, lerdos, nus.
[]´s

sexta-feira, agosto 18, 2006

Carpe Diem

Era uma noite comum. Jantar entre familiares sem muitas expectativas. Carol não se arrumou com muito esmero, a ocasião não era formal. Ela não podia imaginar que aquela noite mudaria a sua vida de forma tão drástica.

Ao chegar na casa da tia percebeu de imediato uns convidados atípicos. Bateu o olho no Pedro e já sentiu seu coração bater mais forte. Ele não era lindo, longe disso, olhando bem até parecia ser meio frágil, mas o olhar dele era o mais terno que poderia existir. Carol imediatamente se apaixonou por aqueles olhos. Começaram então as melhores três semanas da vida dos dois. Foram semanas de encantos, deslumbramentos e descobertas. Trocas de olhares, carinhos, beijos, de uma hora para outra a vida passou a ter um sentido e os dois, embasbacados com tão intenso sentimento, viveram esses dias felizes e um pouco abobados.

Até aquela fatídica tarde de maio. Dia fresco, sol fraquinho e um cheiro gostoso de bolo recém saído do forno no ar. Um dia perfeito para uma notícia tenebrosa. O Pedro chegou muito sério – parecia não perceber toda a magia do dia - e sem muitos preâmbulos falou que tinha tido câncer, se tratado e julgava estar curado, mas tinha descoberto que o câncer tinha voltado e começado a se espalhar. A primeira reação da Carol foi abraçá-lo, queria protegê-lo. Mas ele a afastou. Disse que a amava muito, mas que não queria que ela se prendesse a ele. Não queria que ela sofresse se ele partisse.

Em vão ela tentou retrucar. O amava tanto que queria estar ao lado dele. Não importava se sofreria ou não, aliás, já se sentia coberta de aflição, com um peso no peito e uma vontade enorme de sentar e chorar. Ela precisava estar com ele e não estava exigindo nenhuma garantia. Mas ele a amava demais e não queria que ela acompanhasse seu sofrimento e muito menos que se abatesse junto com ele. Por amor ele terminou. Por amor ela queria continuar.

E assim o tempo passou. O Pedro tentando se curar, a Carol tentando se segurar. Enquanto o Pedro a evitava, ela se controlava. Ele só piorava e sem muitas esperanças médicas, eles aguardavam, separados por uma doença cruel e um grande amor sufocado, o inevitável. Até que chegou. Ela estava em casa pedindo a Deus por ele, quando o telefone tocou. Não precisou atender, ela simplesmente saiu e se dirigiu ao hospital. Esmagada pela tristeza lancinante, ela se despediu do seu grande amor com um afago no rosto e um beijo na testa do corpo já frio.

Novamente o tempo passou. Há 3 meses ele tinha partido e parecia ter sido ontem. Ela começava a ser intolerante, tinha cansado de ouvir as pessoas dizerem que sua dor ia passar. A dor era dela e ela não queria que fosse embora. Curiosamente não tinham fotos juntos, a única lembrança física que ela guardava era uma camiseta suja de suco de laranja que ele deixara em sua casa. A camiseta que ela agora tratava com reverência e que dobrou cuidadosamente, enquanto sentava na cama e chorava seus sonhos despedaçados. Sentiu ainda nos dedos o cheiro do desodorante que nem os meses na gaveta conseguiram tirar. Ainda tentando criar forças pela derradeira vez, antes de deixar a melancolia tomar conta do seu corpo, ela afugentou uma teimosa lágrima, sorriu com cara de Olcadil e levantou trôpega, na sua frágil tentativa de esquecer o passado. Não conseguia. Não queria esquecer. Tudo o que pensava era em um dia reencontrar o Pedro, não sabia mais se ainda queria viver.

terça-feira, agosto 15, 2006














Vida-voante, silenciosa.
Se não fosse eu,
quem a notaria ?



Hai-kai do Leminski e foto feita em João Pessoa (PB). A (suposta) tristeza da menina que vende a "doçura" foi algo poético para mim e resolvi deixar o momento aprisionado no tempo.

sábado, agosto 12, 2006

papel de bala

Eu deixei de te amar. Como uma árvore deixa cair uma folha. Quase inconscientemente. Quase sem querer. As pequenas coisas... A vida cotidiana foi invadindo minha mente, causando pausas cada vez maiores no exercício constante que era pensar em você. Pregar um botão. Lavar a louça. Pegar o ônibus. Eu deixei de te amar como alguém que sai de casa e esquece as chaves. Eu deixei de te amar como os viciados largam os vícios; um dia de cada vez, um segundo de cada vez. Porque o amor é uma droga que se cheira de camisas usadas ou se fuma entre lençóis. Que se injeta nos braços de outrem. Eu deixei de te amar como quem apenas não se lembra de onde parou o carro. Como uma foto que desbota com o tempo. Eu deixei de te amar. Você... você deixou.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Excesso de Trabalho

O dia hoje está seco.
Hoje, o dia está seco.

Está seco o dia hoje.

Seco hoje o dia está.

O dia hoje seco está.
Hoje o dia seco está.
Está seco hoje o dia.
Seco, o dia está hoje.

O dia, seco está hoje.
Hoje, seco, está o dia.
Está hoje o dia seco.
Seco está o dia hoje.

O dia seco hoje está.
Hoje, seco, o dia está.
Está hoje seco o dia.
Seco está hoje o dia.

quarta-feira, agosto 09, 2006

Como seria s’eu não fosse

S’eu não fosse um chato de galocha eu seria desses caras divertidos que gostam de praia e contam piadas engraçadas. Seria o tipo que sai com os amigos para beber e “zoar” sem pensar nos problemas da Somália ou das guerras sangrentas. S’eu não gostasse de Chico Buarque eu ouviria todos os sucessos do momento, as músicas do verão e conheceria todos os artistas que fazem sucesso com uma música esdrúxula qualquer.

Se não fosse roqueiro, eu adoraria carnaval e pularia atrás do trio elétrico todos os dias do carnaval, iria para todos os shows de axé, pagode, e calypso. S’eu não fosse responsável e preocupado com o meu futuro eu não acordaria todos os dias para chegar cedo no trabalho, nem viajaria tanto. Talvez eu tivesse qualquer emprego que pagasse minhas farras no fim de semana. Como eu também não gostaria de arte, filosofia e política, minhas conversas seriam norteadas exclusivamente por carros da hora, futebol e mulheres. Não teria qualquer preocupação com os rumos do país e nem pensaria sobre coisas idiotas como existência, aspectos sociais e jamais questionaria o mundo em que vivo e as coisas todas da humanidade.

S’eu fosse do tipo preocupado com a aparência em detrimento do cérebro, eu malharia todos os dias para ficar com um corpo bem sarado e desfilaria na praia, exibindo meus músculos torneados para as beldades, também torneadas e bronzeadas. Eu poderia não ser um eterno crítico de tudo: do mundo, das letras, das coisas erradas e das injustiças. Na verdade eu nem saberia criticar alguma coisa, porque o mais importante para mim seria meu umbigo.

S’eu não me preocupasse com os sentimentos alheios, eu sairia com qualquer mulher bonita e gostosa, sem me preocupar em ligar no outro dia, nem me preocuparia em ofender e magoar os outros com meus comentários impertinentes. As mulheres seriam apenas objetos para obtenção de prazer fácil e constante.

S’eu fosse idiota, eu sofreria menos as dores que não são físicas e também não me lembraria de pensar em todas as coisas que norteiam eternamente meus pensamentos. Eu estaria sempre sorrindo um sorriso verdadeiro, mesmo sem saber a razão do sorriso. Jamais entenderia comentários com mais de um sentido e também não entenderia o sentido das coisas obvias.

Mas eu resolvi ser um chato de galocha, do tipo que não sabe contar piada, que gosta de Chico Buarque e abomina a música do momento. Resolvi nadar contra a maré e gostar de rock na cidade do axé e não carrego comigo o estigma do baiano preguiçoso, só porque eu sou do contra. E ainda por cima resolvi gostar de arte, filosofia e política e minha conversa é sempre chata e pedante. Sou o tipo interessante apenas àqueles que sabem a diferença entre deputado e senador, ser e estar, ter a haver. Porque existir é conseqüência de pensar: já me disse Descartes.

E nadando contra a maré, gosto de ler ao invés de ver televisão e acho cinema americano supérfluo e desnecessário. Sou contra qualquer tipo de populismo e odeio veementemente a tentativa eterna do homem de ganhar dinheiro com a ignorância q’eu teria s’eu fosse o oposto de mim. Da mesma maneira, tenho uma preocupação acima do normal com o outro. Não gosto de falar a verdade quando ela dói e só gosto de prazer mútuo. E não sendo idiota, sigo sofrendo as dores do mundo.

Mas entre todas as maneiras de ser eu, aquela que me dói mais é saber que amar você é o que torna minha vida mais difícil todos os dias.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Analogias

Eu sempre amei as quintas-feiras. Que dia lindo é quinta-feira. Quinta-feira é quase sexta. Quinta-feira é dia de treino noturno e o vôlei move a minha vida. É nas quintas que eu vejo o meu amor treinando.

Meninas do vôlei namoram meninos do vôlei. Mesmo que se apaixonem pelos meninos do futebol de salão. Mas meninos do futebol de salão não combinam com as meninas do vôlei. Não são altos o suficiente, além disso, que casais lindos formam meninas e meninos do vôlei. Gosto de treinar a noite. É mais fresco e depois consigo ainda assistir o treino do meu amor. Ele fica lindo jogando. Tão alto, sorriso aberto quando faz ponto. Quando ele usa o short branco do uniforme, usa também uma cueca azul-marinho. Eu gosto de azul-marinho. Hoje eu vou treinar de trança. O meu amor gosta quando uso tranças. Eu gosto de agradar o meu amor. Mesmo não sabendo se ele é o meu amor. Quero dizer, ele é o meu amor. Eu sou menina do vôlei e ele é menino do vôlei. Somos altos, somos saudáveis e um dia formaremos uma família alta, disciplinada e feliz. Nossos filhos jogarão vôlei. Minha vida é perfeita. Meus planos são plausíveis e serão todos realizados. Eu sempre sorrio quando vejo o meu amor. Uma pena que não consigo fazer meus olhos brilharem. Mas eu sou persistente, tenho certeza que um dia conseguirei fazer meus olhos também sorrirem para ele, do mesmo jeito que fazem para aquele menino do futebol de salão. Não quero pensar nisso, eu não preciso daquele menino, ele não é alto, ele não é perfeito, ele não me faz ser saudável e ele não vai me dar uma vida calma e controlada.

Se eu sei de tudo isso, por que meus olhos insistem em brilhar e meu coração teima em disparar quando eu vejo o tal menino? Por que a tranqüilidade não me atrai e eu insisto em me arriscar? Acho melhor não me questionar. Indagações fazem mal e trazem sujeira para minha linda e estéril vida.

quarta-feira, agosto 02, 2006

pra quem tiver paciência

- vai ficar tudo bem.

Claro. Não tenho a menor dúvida que vai ficar tudo bem, ela não tinha que me dizer. Porque todas as coisas passam, e nesse rodízio eventualmente terá de vir alguma coisa boa. Porque é assim. Porque que se eu me perguntar qual a pior coisa que pode acontecer eu diria “a morte”, e se eu morrer a vida continua, e como dizer então que não ficou tudo bem? Ou, por exemplo, se acabar o mundo, ainda tem um universo gigantesco vibrando de possibilidades que prosseguem e se renovam, é óbvio que estará tudo bem. Tudo sempre fica bem. E é por isso que não me serve de consolo algum.

- vai ficar tudo bem, ela repetiu, acenando com a cabeça.

- é. Vai sim.

E fiz um esforço para sorrir, afinal ela estava tentando me confortar.Um gole de café. Preto. Ela levantou a mão e tentou pôr no meu ombro, mas, por sorte, a distância que a mesa nos impingia era maior que o comprimento do braço. Eu gosto de pensar que sou uma pessoa dura como aço. Ou pelo menos dura como um osso de galinha. Eu gostaria de pensar que não mereço esse tipo de olhar que ela me dá. Cheio de compaixão. Pena. Eu preferia que ela não tentasse me confortar, não a mim. São poucas as oportunidades que a gente tem de se ver nos olhos dos outros. Os olhos dela só querem me mostrar fraqueza. Olha como você devia estar abalada. Olha como você devia estar triste. Olha como você é digna de pena. Eu estou bem, perfeitamente bem. O meu lábio inferior só está tremendo de indignação por você me achar tão frágil assim. Deixei umas moedas sobre a mesa, pra pagar o café, dei uma desculpa qualquer e iniciei minha rota de fuga, antes que ela tentasse me abraçar ou pior, me levar para assistir uma comédia romântica.

- Tchau, Leda. A gente se vê por aí.

- ... Tchau...

Me atirei pra fora do café, e me entranhei a pé pelas calçadas, está um dia bonito, com céu azul e umas nuvens bem altas. Tirei um cigarro da bolsa. Um Pall Mall. Comprei por causa do nome, que é engraçado. Um trocadilho esperando pra ser feito. Dizem que cada marca de cigarro põe um aditivo diferente pra você se acostumar e fumar só aquela marca. Como eu fumo muito pouco, posso variar e escolher segundo caprichos bobocas.

O dia está realmente muito bonito, só não tenho nada pra fazer com meu tempo e caminhar não está nada mau. Queria me perder. Um pouco. Fazer como as pessoas que se perdem em labirintos e virar à direita, sempre à direita. Se bem que na cidade eu acabaria dando voltas ao redor do mesmo quarteirão. Nesse caso, uma à direita, uma à esquerda, reto, reto, esquerda, direita, esquerda, reto, reto.

Bom não ir pra lugar nenhum. Andar sem ter que saber que no fim do caminho estará alguém e este alguém estará esperando por alguma explicação, ou pelo menos um cumprimento. Pra que existe cumprimento, mesmo? Não quer dizer nada, a pessoa viu que você está lá, você idem, mas pular o cumprimento é visto como falta de educação. É um reconhecimento, acho. Eu quero que você saiba que eu sei que você está aqui. Algo assim. Mas tem dias que nem isso. Tem dias que o querer ordena a boca fechada até que a próxima palavra pronunciada faça voar areia e hieróglifos. Hoje é um desses dias, e a perspectiva de ninguém por algum tempo é animadora.

Direita, esquerda, reto, reto, esquerda, direita, esquerda, reto, reto. Uma pracinha. Gracinha de pracinha. Ótimo, já estou fazendo riminhas. Que lindo dia. A praça é minúscula, com árvores compridas, flores e agora eu, sentada num banco de concreto com anúncio de ótica. Puxo da bolsa o Pall Mall. Há algumas semanas atrás eu me perguntava quando exatamente eu tinha virado uma comedora de caramelos. Comprava caramelos e sentava para ler no degrau da padaria, se estivesse sol. Quando foi que eu virei uma comedora de caramelos? Agora, nada de caramelos. Cigarros. Então grave esse momento na memória, menina, só no caso de um dia você se perguntar “quando foi que virei uma fumante?”. Agora. Já é o terceiro, contando com o que tomei no café. Se eu virar fumante, a culpa é de hoje.

Cigarro aceso, maço na mão, silêncio e nada pra fazer. Dá até pra sentir meu eu-analítico aflorando. Se a gente tem eu-lírico, por que não eu-analítico? O mais certo era ter um eu pra cada coisa. Eu-matemático, eu-prático, eu-lavador-de-louça. Na frente do maço, um brasão medieval, de cores brilhantes. Contraditório, no mínimo. Cale-se, eu-analítico. Não calo. Nesse caso, prossiga. No brasão duas frases em latim, tudo bem, combina com o brasão. Frase um: per aspera, ad astra. Por um acaso, a mesma frase do logotipo do colégio onde mamãe ensina. Cigarro e crianças. Diz algo a respeito de alcançar as estrelas por caminhos ásperos, ou seja, difíceis. Entendo a aplicação da frase para crianças, mas não para o tabaco. Frase dois: in hoc signo vincis. “Com este símbolo vencerás”, palavras do imperador romano que tornou o cristianismo a religião oficial de Roma. Nada a ver com fumo também. Ótimo. Agora temos cigarro e crianças e cigarro e cristianismo.

Ocasião perfeita para o eu-com-mania-de-perseguição bolar uma teoria da conspiração. Algo como “um cigarro com o suspeitíssimo nome de Pall Mall esconde terríveis mensagens subliminares dizendo ser bom ao se associar a crianças e a igreja católica apostólica romana”. Seria quase o Código da Vinci, se a Mona Lisa fosse um pacote de cigarros. Mas meu eu-com-mania-de-perseguição é subdesenvolvido, não consigo nem acreditar que as cenas do homem pisando na lua foram feitas em estúdio. Ou seja, eles tinham 2 lugares no brasão pra preencher e usaram as primeiras coisas em latim que acharam, e ainda acharam que ficou chiquérrimo. Afinal, quem sabe latim hoje em dia?

Para coroar, o slogan,: “wherever particular people congregate”. Hilário. Posso até ser “peculiar”. Mas juro que não estou congregando. Ou estou? Se fosse um daqueles filmes de suspense psicológico, na verdade eu seria a Ana e a Leda é só outra personalidade de uma pessoa surtada, que no momento está congregando. Tipo aqueles filmes, em que no final todo mundo é todo mundo, e que o roteiro é feito só pra culminar numa cena final com música alta daquelas que só faltava pular o roteirista gritando: “ahááá! Por essa vocês não esperavam !!”. Mas não vejo nenhum roteirista saltando, então acho que posso concluir que não estou congregando. Análise concluída. Resultado? Da próxima vez eu compro Carlton.

Caiu cinza na minha roupa. Quem manda ficar pensando besteira e não bater a cinza? Apago o cigarro. Algo de bom, pelo menos num dia como esse, em segurar um tubinho com fogo na ponta. Finge uma ocupação e, melhor de tudo, cria a fumaça pra se observar, subindo em espirais e se dissolvendo infeliz antes de poder se juntar às nuvens lá em cima. Jogo a bituca no maço, porque não tem lixo nem cinzeiro à vista.

Grama. Árvores. Banco de concreto. Nada pra fazer. Ò deus dos passatempos, que faço eu agora? Sopro bolhinhas de sabão? Tiro a caneta da bolsa, cruzo a perna e começo a desenhar no tornozelo. Garatujas, como se estivesse ao telefone, que é quase nunca. Uma borboleta, um asterisco. Já que o latim está tão em voga, “memento mori”. Um lírio. Mais garatujas. Tiro o sapato e a meia. Uma estrelinha. Um pássaro. Outro asterisco. Uma ampulheta. Rabisco a sola também. È mais demorado, faz cócegas dolorosas. Ponho a meia e o sapato antes de me ocupar do outro pé. Já está quase escuro quando termino de amarrar o cadarço. Saio andando na minha nova pele. Sou um smurf indiano das canelas pra baixo.

Me perdi eficientemente, mas ando com toda a calma, ocasionalmente perguntando onde fica a avenida. Trem, então casa. Chave na porta, e ninguém pra cumprimentar, louvado seja o deus dos passatempos. Tirar a roupa do dia e me trancar no quarto. Na minha torre. Até que não foi difícil. Sobreviver. E até que me saí bem. Acho até que saí ganhando. Porque minhas meias, que eram brancas, agora são azuis.