quarta-feira, agosto 31, 2005

Morte de uma crônica anunciada

O sol escaldante da manhã de um dezembro já ido insiste em trespassar a porta de vidro, indo no compasso da hora, tocar lentamente a borda do tapete multicor em formas geométricas que forra o chão da grande sala. Sobre o mesmo tapete, numa pequena mesa de centro, podem ser vistas duas taças de puro cristal, sendo uma suja e outra virgem, ao lado de uma garrafa vazia de Chiantti, cuja safra data de 1999, testemunhas vivas de uma recente noite a dois, mas, com ausência de um corpo. Mais ao lado, no cinzeiro, restos de um charuto Cohiba Lanceros, e um reluzente isqueiro de ouro. No centro da mesa uma escultura abstrata feita de barro, e repousando junto à ela um pedaço de papel amassado. No chão, junto ao grande sofá em L, está um corpo desnudo em seu dorso forte e bronzeado, totalmente entregue à liberdade do sono. É de um homem já entrado na meia idade, como se vê no grisalho da cabeleira e da barba curta e desenhada. Tem um rosto de traços fortes, e não mais se pode formar de sua expressão por lhe faltar o brilho dos olhos, estes que fechados estão, entregues às visões da mente num sono profundo. Um pouco afastado, fora do tapete e junto ao final de uma das pontas do L do sofá, um cão labrador de pêlos negros e brilhantes está deitado com uma das patas sobre os olhos, como a não querer ver tal cena. A sala é enorme, adornada em suas paredes por várias telas de bom porte artístico e valor financeiro. Muito bem se pode ver um Kandinski, um Miró, um Portinari, um Renoir, dentre outros. Uma decoração graciosa e de muito bom gosto, típica da casa de um nouveau riche.

O corpo se mexe. O cão ensaia um abano de rabo. Lentamente o homem se contorce gemendo, e aos poucos volta à vida. O cão se aproxima a mendigar carinho. Ganha um afago despercebido e volta ao mesmo lugar. Com a ponta dos dedos, indicador e polegar, o homem alerta os olhos que já acordou. Sentado no mesmo chão olha em volta na ânsia de lembrar o que houve ali. Por um segundo pensa se tratar de mais uma noite das que pediu socorro às vendedoras de amores descartáveis, costume antigo, e companheiro de sua solidão. Levanta-se entre as dores da noite fora do conforto da cama, alonga-se devagar, e segue rumo à piscina em seu passo lento e pensativo. Enquanto o faz, tenta encontrar na gaveta das lembranças recentes e embaralhadas pelo porre, motivo plausível para a cena primeira após seu despertar nesse domingo de sol e céu azul de nuvens isento. Mergulha na água convidativa e ao sair do outro lado já tem respostas para tudo. Esperara desde as nove da noite pela mulher cuja imagem fizera parte de todos os seus sonhos, dormindo ou não, desde o primeiro cruzar de olhos meses antes dali, num vernissage de um amigo em comum.

Sentado na borda com os pés submersos rememorou cada ato desde a noite “fatídica” do insólito encontro até a quarta-feira corajosa do convite. Muito prazer, sou Sofia, disse com sua voz rouca junto a um leve aperto de mãos. Seus olhares se haviam cruzado desde que ela entrara no salão, posto que tal beleza não passaria despercebida em lugar algum. Tinha a pele de branca bruma e ímpar maciez; o rosto simetricamente perfeito, afilado, delicado; uns lábios finos com um leve brilho; cabelos negros em chanel; olhos verde-jade de uma expressão marcante, como se a todo instante perguntasse “por que?”. O resto da escultura cobria-se num vestido preto e básico, sem alças para mostrar o colo, e também o delicado colar em ouro branco que trazia no pingente um solitário brilhante. Cada grama de seu peso mostrava-se proporcionalmente dividido pelos cento e setenta e poucos centímetros da sua altura. Ele, solteiro convicto com reservas, como costumava dizer, passou a ver à sua frente a queda de seus conceitos. E não demorou muito, pois bastou meia hora de descontraída conversa para descobrir ser aquela jornalista recém-chegada de estudos na Europa, contando vinte e cinco, e solteira, sua arrebatadora paixão. Algo em seu íntimo dizia que aquela era a mulher. Sofia, assim sem “ph”, sem modismos grafológicos, tampouco superstições numerológicas. Era assim: Sofia. Simplesmente. Inteligência e beleza raras num só lugar. Todo ele estava ali, ou melhor, todo seu corpo, diante da prova cabal da existência de Deus, mas faltava uma parte, a da mente, que já sonhava com dias eternos juntos com aquela mulher deslumbrante.

Passaram-se três meses desde o vernissage, e até ali tinham mantido contatos diários, por telefone, internet, além dos encontros “propositadamente fortuitos” criados por ele, porém, sempre curtos, indignos de longas conversas. Surgiu então um certo ar de cumplicidade, entrelinhas sugestivas, mas, junto a isso, certa timidez, um tipo de “deixa que eu deixo” que só atrapalhava o nascimento de uma relação consistente. Até que num ato de coragem ele a convidou para jantar na sua casa, dois após aquele, às nove da noite, e acertado foi, e acertados ficaram. No dia tal fez o que lhe cabia, preparando tudo sem permitir-se ao erro. O clima, o vinho, a música, o jantar. Tudo devidamente pronto. Desceu para a sala bem vestido como de costume e aguardou ansiosamente consultando o relógio. Nove, nove e meia, dez, dez e meia. Ouviu todos o cds em silêncio. Meia noite abriu o vinho, acendeu um charuto, fumou mais calado ainda, baforando angústias. Amassou o poema que fizera. Sentou no chão. Secou a garrafa do vinho como se cada gole fosse um pedaço daquela ingrata que sequer teve a decência de se desculpar pelo furo. Deitou. Dormiu.

Saiu da piscina, pegou o celular e ignorou o aviso de mensagem recebida. E ligou aleatoriamente:

“Alô?”

“Meu amor! Que saudades...”, disse a voz do outro lado.

“Cecília, janta comigo hoje?”, disse ao reconhecê-la.

“Mas claro, com prazer, amor!”

“Ok! Te espero às nove, aqui em casa mesmo!”

“Combinado!”

“Beijos, tchau”

“Tchau, amor!”


Movido pela curiosidade resolveu ver de que se tratava a tal mensagem. Era de Sofia. Hesitou, quis ignorar. Não conseguiu.

“E assim, dois depois da quinta chega o domingo. Um grande dia merece uma grande noite, não achas? Beijos, Sofia.”

Ps: Cabe aqui um pedido de desculpas ao mestre Gabo, pelo trocadilho do título.

terça-feira, agosto 30, 2005

Um gole de traição e café...

Precisava encontrar o leite. Não agüentaria seu estômago por tanto tempo vazio, aquele café negro e forte... Forte como gostaria de ser, pensou. O pó branco logo se assentou no fundo da caneca amarela. Sentiu falta das bolas doces e brancas que boiavam como náufragos nas xícaras da sua infância antiga. Infância que acenava com um lenço colorido do primeiro lado da ponte dos anos, enquanto as lágrimas vermelhas da saudade soluçavam no ponto seguinte. E lá, o tempo contava vinte e nove.
Longe dos pedidos da sua consciência, a garganta rejeitava mais uma vez, a investida do café. Nem o odor fresco daquele caldo quente a seduzia, afrouxando-a. Seu corpo respondia à tristeza do seu coração, como se qualquer manifestação de prazer, atestasse que estaria por sofrer menos a perda do seu amor.
Desistiu, como já se acostumara a fazer e seguiu para a sala ampla daquele apartamento de 2 quartos. O caminho das prestações seria largo, mas nada que afastasse o prazer da sua primeira conquista. Bem adquirido com a promoção justa que recebera. Parecia agora, enquanto tentava se acomodar deitada no sofá estampado de 2 cômodos, que aquele canto no meio dessa cidade já tão sem graça, teria sido o único momento em que a sorte havia apontado para ela. Não mais se construía apartamentos com vastas dimensões. Ela estava em um deles. Sozinha.
O teto bailava, rajado por faróis vindo de carros desconhecidos. E por algumas vezes, ela desejou que aqueles raios fossem cadentes estrelas a coroar seu insistente pedido de voltar no tempo. Não apenas dois dias, quando flagrara amargamente uma mão conhecida, carregada de toques e promessas, sem aliança, envolta de uma cintura loira. Mas 3 anos, no exato instante em que perdoara a primeira traição com um beijo. Evitaria, por certo o noivado 1 mês após e o desperdício de tanta dedicação, sonhos e declarações.
Velava a morte das tentativas, da sua solitária crença de um amor heróico, responsável por atenuar os por quês das relações, das rotinas sem dribles, da inata infidelidade masculina, visto que a feminina não lhe cabia. Enquanto ainda lamentava a sua fraca percepção diante das esfarrapadas desculpas para tantas ausências e atrasos, adormeceu. E sonhou.

.....ooo

As bolas do leite haviam emergido. Apresentavam uma diferente textura. O café não estava talhado com a cor costumeira da mistura do negro com o branco. Tinha um tom rebú, de vermelho ensangüentado. Merecia sorver o doce daquelas bolas longe do sumo escuro. Pegou uma colher. E antes de aproximar da boca, o que os olhos já haviam devorado, sentiu a garganta elastercesse prazerosamente à espera do que logo mais estaria a penetrar-lhe. Nas frações que cabem aos segundos, deu-se por conta que estava prestes a devorar não as crostas formadas pelo leite, mas o pedaço de uma coisa, que identificara como a parte mais sensível do pênis que a havia enganado.
Ainda teve tempo de assustar-se com o restante “dele” que habitava a tábua de carne, ao lado da peixeira que o fatiara. Sentiu-se “arretadamente” em êxtase. Como se o gozo que tanta vezes sentira com aquele ser, tivesse atingido a plenitude com a sua morte.

.....ooo

Os olhos abriram-se, sem direção certa.Tinha a sensação de ser expulsa do próprio sono. Notou que já era dia. Não vinha à memória quantas horas havia dormido ou se algum sonho tinha feito parte daquela entrega ao cansaço. Sabia apenas que sentia fome e que estava revitalizada. Queria voltar ao trabalho. Não mais daria desculpas por sua ausência. Tinha uma estranha sensação de dever cumprido e teve vontade de rir. Cedeu algum tempo ao banho, engoliu um suco de laranja com torradas e já estava alcançando a porta, quando inexplicavelmente lembrou que precisava amolar a peixeira.

segunda-feira, agosto 29, 2005

Soledad

Soledad, este era o seu nome. Seus pais não eram espanhóis, tampouco descendentes. Sua mãe uma maria ninguém, seu pai um estivador, que nas noites de folga vagava pelos cais de onde quer que estivesse. E em uma noite qualquer, tão trivial quanto a sua própria existência, enquanto estava pelos braços das putas, ouviu em um tango desafinado a palavra Soledad, lembrou-se por um instante da mulher que estava em casa com a barriga cheia de uma menina, e ali, entre garrafas vazias de cerveja e bitucas de cigarro, decidiu que este seria o nome de sua filha. Mal sabia ele que o seu significado seria a única herança que deixaria para a primeira da sua prole.


Soledad cresceu com o estigma daqueles que só se revelam para si mesmos e em noite de puro breu, nem ela mesma se encontrava. Pobre menina que nunca se encaixara em nenhum conceito, ela não significava nada nem para ela mesma. Talvez as flores de seus vestidos de chita fossem mais expressivas, seu olhar morto e pesado não sobressaia das pálpebras magras. Não era bela nem feia. Era do tipo que ao passar por milhares de pessoas poderia atravessar todas elas, que, indiferentes de sua presença, seguiam suas vidas.


Soledad cresceu sem atrativos físicos, se chamou a atenção de algum homem, ele não ousou demonstrar isto para ela. Densa como as trovoadas em alto mar, ela foi se suportando dia após dia, houve até um tempo em que viver era um fardo difícil de carregar, nem o conformismo se apiedara de sua pessoa.


Soledad, um dia, preparou o jantar para seus irmãos que iriam chegar de viagens longas, como as de seu pai, falou com a mãe que iria comprar pão. Saiu de casa, na mão direita apenas o dinheiro e as chaves de casa. Ao atravessar a rua, naquele início da noite de uma sexta-feira, um carro dirigido por um bêbado encontrou seu corpo.


Soledad caiu no chão, e a poça de sangue que nascera em seu ouvido contrastou com a sua pele clara. Em volta daquele cadáver caído, de bruços, se amontoavam pessoas ávidas por cheiro de morte. Quando viraram o corpo que nunca tivera vida reconheceram a menina que carregou o estigma da solidão. E por ironia, foi depois de morta que seus olhos tiveram expressão de vida. Faltaram a Soledad os sustos...


(perdoem... não escrevi esta semana, e o texto acima não é meu... mas foi o primeiro que li - já tem um certo tempo - duma menina pra quem a intensidade é mais intensa... o vermelho mais vermelho... o amanhã é hoje... e o hoje tem a urgência do agora. e pra quem o sangue, como não poderia deixar de ser, não flui vagarosa e compassadamente, mas escorre em filetes desconexos, como o faria num suicida.)

domingo, agosto 28, 2005

Oração ao Senhor por momentos melhores

Senhor Deus. Peço antecipadamente perdão. Mas eu estou preso a um pecado muito grande. Eu odeio o Latino. Aquela lombriga bisonha, que parece o rabo da lagartixa depois que é arrancado pela pedra que a gente joga só de sacanagem. Ele rebola e canta festa no apê. Gente, porque ele existe? Por que ele faz sucesso? Deus ajuda-me a entender o porquê da existência de um ¿cantor? tão medíocre, com letras tão medíocres. É castigo Senhor?

Por que a banda Calypso faz tanto sucesso? Aquela mulher, cheia de rosto nos dentes, não sabe cantar. Ela não sabe cantar. Por que ela faz sucesso na Europa? O marido dela, Sr. Topete Ridículo, não sabe tocar guitarra, mas fica fazendo charme....

Oh, meu Pai, ajuda-me a compreender tantos absurdos. Lembra, meu Deus, quando o É o Tchan, fazia sucesso com duas vagabundas mostrando o útero na televisão? E aquele imbecil chamando as mulheres de ordinárias e outros impropérios, enquanto todas elas adoravam e se divertiam com tudo isso? Se eu chamo alguma mulher de ordinária, além de levar um bom tabefe, ainda corro risco de ser processado. Por que tanta injustiça meu Deus?

E a Companhia do Pagode cantando na boquinha da garrafa? O que era aquilo Jesus? Qual é a lógica de uma mulher (e muitas vezes homens), ficarem roçando suas vergonhas na ponta de uma garrafa? Onde está a diversão? Eu tento imaginar o que pensa um turista, desses que não sabem NADA do Brasil, ao ver essas cenas. Será que eles acham que estão todos possuídos? Será um surto coletivo? Epilepsia nas multidões? Exorcismo? Não posso explicar.

E o arrocha, o que é isso meu Pai? Quanta gente feia junta. Tem gente que chora ouvindo Silvano Sales e aquela outra que eu não sei o nome, cantando. É muito feio, é muito baixo. É o inferno se revelando Senhor. Eu não consigo. Definitivamente eu não consigo colocar no papel meu repúdio a esse tal de arrocha.

A minha lista de odiados não tem tamanho. E não é só no Brasil Pai. Eu tenho certeza que o Diabo está contaminando todos os governos do mundo. Eu acho que funciona assim: o Diabo, querendo roubar todas as almas do mundo, influencia os governos do mundo todo para eles apoiarem esses movimentos que alienam as pessoas. Daí o governo, associado à mídia, começa a bombardear as mentes de todos nós com essas coisas tristes e a gente começa a ficar alienado e perde a noção do ridículo. E entramos num vício eterno dessas barbaridades. Depois que toda a humanidade ficar possuída por tudo isso, o Diabo vem e leva todo mundo e aí decretamos o fim do mundo.

E sinto que está perto. No Brasil, começamos com o Funk e o Axé, no início dos anos 90. Doses homeopáticas. Depois a explosão do pagode. Com certeza o maior vilão entre todos. Eu pensei que seria impossível descer mais que o pagode. E chegou o Arrocha. Agora tenho certeza que é impossível chegar mais baixo, porque depois do inferno não há mais nada.

Dessa forma, Senhor, peço-lhe encarecidamente que o mundo acorde. Eu sei que é muito difícil reverter esse quadro. Mas é triste ver a minha gente se acabando com essas coisas. Sabe Deus, eu sou muito sensível ao sofrimento alheio. E eu consigo ver o sofrimento dessas pessoas, que não conseguem perceber o mal que fazem a si mesmas. Jesus, vamos começar aos poucos. Um pouco de Caetano, Gil, Chico. Vamos viciar todos em música que faça pensar. Vai doer, eu sei. Mas é uma dor que trará em seguida o prazer.

Depois que os ouvidos ficarem viciados em algo com lógica, harmonia, compasso e andamento, colocamos música erudita. Mas por favor, tem que ser bem de leve. O contato prolongado com música erudita poderá causar efeitos devastadores nas multidões.

Deus, ajuda-me nessa empreitada. Vamos limpar o mundo do Diabo. E o Diabo, baixo como sempre, escolheu a música para nos ludibriar e ficar com nossa alma.

Meu Pai, conto com sua benevolência e bondade divina.

(em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo) Amém.

sábado, agosto 27, 2005

Liberdade ainda que à tarde

Não sou filósofa. Não tenho a mínima pretensão de sê-la. Mas sou metida. Gosto de versar sobre os mais diversos assuntos. E liberdade e o ser livre é um dos meus assuntos prediletos. Não sei se é porque sou sagitariana ou se é porque no horóscopo chinês sou cavalo. Mas liberdade é fundamental na minha vida. Mas não me venham com conceitos. Definições. Clichês. Eu estou falando de sentimentos.

Ser livre é, antes de mais nada, uma necessidade do espírito, mais do que do corpo. Ir de um lado para o outro é fácil, difícil é ser livre para escolher onde se quer estar e bancar a escolha de estar lá.
Ser livre é viver sua própria essência. Sentir seus próprios sentimentos e desejar seus próprios desejos. Ser livre é poder se expressar à sua própria maneira. É poder estar com quem se ama.
Ser livre é não se preocupar com o lugar certo ou a hora certa ou a pessoa certa. Porque o ser livre é quem faz a hora certa, o lugar certo e a pessoa certa.
Mas ser livre também exige responsabilidade. Porque o ser livre não pode exercer sua liberdade pelos outros nem pode impedi-los de também serem livres. A sua liberdade não dá o direito de intervir na liberdade alheia.

Ser livre é andar descalço e sentir a chuva molhar seu rosto e ouvir uma boa música. É poder beijar na boca, seja a boca do seu gato, cachorro ou namorado. É poder gostar de cores, quaisquer cores.

Ser livre é gostar de ler e ler de fato. Ser livre é poder escrever só porque a folha em branco te perturba. É pintar só porque a tela em branco também te perturba.

Liberdade é poder acordar sem o toque do despertador...

Liberdade é poder olhar na direção que quiser...

Liberdade é poder andar de mãos dadas...

Liberdade é poder ver o sol nascer...

Liberdade é poder misturar prosa e poesia...


Liberdade ainda que à tarde

Liberdade ainda que à tarde
Ou ainda que à noite
Ou quem sabe até de madrugada
Ainda no escuro
Onde até os opressores
E ditadores de almas
Dormem livremente

Liberdade
Pra quebrar os espelhos
E os relógios
De pulso
De ponto

Liberdade
Pra romper os grilhões
E as algemas
Da censura
E da fome

Liberdade
Pra quebrar os muros
Os portões
E as grades
Da falta de educação
Do preconceito
Da deficiência de caráter

Liberdade de métrica
Do ritmo
Da forma
Da rima

Liberdade ainda
Que à meia-noite
Nos cinco minutos
De troca da guarda
Dos guardas de nossos sentidos
E desejos
E delírios
E anseios
De liberdade

quinta-feira, agosto 25, 2005

Morango e chantilly.


Garcia estancou ao vê-la. Comia um morango com chantilly e ouvia “Je T´aime” com volúpia, com a cadeira virada de lado para a mesa, onde estava a garrafa e duas taças servidas de champanhe. O ambiente estava à meia luz, e ela vestia uma lingerie nova vermelha, justa, especialmente apertada nos seus seios macios e generosos. ”Puta que pariu!” escapou-lhe de súbito, o que provocou em Helena um riso sacana, de canto de boca, enquanto chupava com lenta vontade o morango.
Garcia percebeu a interpreção errada à sua reação. Não era na verdade entusiasmo, e sim realmente susto da situação inesperada. Não sabia o que fazer.
Há três meses estava com tudo planejado, certo, e aquela manhã despediu-se como em todas as outras para ir ao trabalho. Não foi. Buscou Clarice, loira fatal e fogosa, secretária de um dos colégios para os quais ele ensinava, e passou a tarde inteira no motel. Deu oito, conta exata. Estava completamente exaurido. Exaurido, feliz, e relaxado demais para reagir à altura daquela situação.
Além disso, passava-lhe pela cabeça que era coincidência demais, justo nesse dia, aquela história de recepção calorosa.
Na indecisão do que fazer, quando se deu por conta, Helena já havia colocado-o sobre a cadeira e beijava-o, com um morango entre os dentes.
E ficava mais e mais difícil de pensar enquanto ela passou chantilly em sua bochecha, lambeu, perguntou cochichando em seu ouvido “gostosa, meu amor?”, pegou a mão dele e colocou entre suas pernas, e ele sentiu-a molhadinha. O coração disparado, mas, como ele imaginava, o “Juninho” nem sinal. O desespero o tomava cada vez mais e “Carrrrhhhr!”.
Ele começou a tossir ao engolir a fruta, afastando-a atabalhoadamente. “Foi o morango, meu bem?”
Continuava sentado, tossindo, com uma das mãos próxima à traquéia, e a outra apontando para a geladeira.
Ela trouxe água e ele pareceu engasgar-se ainda mais ao beber. Levantou-se, e cambaleante, foi ao banheiro onde, com o dedo na garganta, forçou o vômito várias vezes, na privada.
Ela acompanhava-o de meio metro de distância, apoiada na pia.
Ele, após vomitar até a bílis, abriu o chuveiro, pegou o sabonete e deitou-se no boxe.

- Melhorou, meu bem?
- Arc. É. Porra de morango. Queimou minha garganta toda.
- Vou fazer um café com leite para você.
- Faz um misto também, por favor.

Pensava consigo mesmo que a solução havia sido razoável. Se ela já havia descoberto e estivesse jogando com ele, ele jogaria até o fim. Ao menos não deixava ela caracterizar o flagrante, com a brochada. Ele não brochava nunca – pelo contrário, fazia questão de dar no mínimo três, e geralmente não era esforço. Seria inconteste.
Já avaliava que o dia tinha sido ótimo, por fim: trepou até não agüentar, com a gostosa da Clarice, se salvou de uma boa, e era história para as mesas de bar depois, e estava tomando seu banho enquanto Helena servia um misto e um café. O misto de sua esposa era uma especialidade, algo indescritível aos que nunca experimentaram.
Estava deitado pensando isso quando ouviu na sala o barulho de mensagem no celular.

- Meu bem. Mensagem de... GOSTOSO?!? ESSA TARDE?!? QUEM É CLARICE REIS, GARCIA? JUNINHO??! ELA SABE QUE O NOME É JUNINHO!!

Enquanto passava o xampu anticaspa ele pensava que não devia ter desconfiado de sua esposa – ela não sabia nada. Pensava também que devia ter mais cuidado com celular, e se dormiria na casa da mãe ou do irmão essa noite.

[]´s

quarta-feira, agosto 24, 2005

Nascido em...

...dois de fevereiro de mil novecentos e sessenta e nove, às vinte horas, quando, segundo um desses sites especializados na posição dos astros, a lua estava na casa de virgem, e o sol sabe-se lá onde; sou aquariano. Minha cidade natal é a porta de entrada da zona da mata sul de Pernambuco, berço da monocultura da cana-de-açúcar, rodeada de engenhos e usinas, e por essa vizinhança ficou conhecida como a Capital do Açúcar. Lembro-me bem dos apitos da usina 13 de Maio, que ficava pertinho da minha casa, nas horas mais importantes do dia. O das sete da manhã lembrava a escola, o de meio dia e meia o almoço. Porém o mais significativo era o da meia noite, em caráter excepcional, no último dia do ano, sendo este seguido de um blecaute, o que dava mais emoção à festa de reveillon. Tempos depois, morando na capital, senti falta do apito e da escuridão do interior.

Palmares é cortada por um rio que nasce lá pelas bandas do agreste, e dizem os antigos que o mesmo já foi potável num tempo longínquo. Minha relação com o dito sempre foi amistosa, posto que na minha época de menino ele de potável não tinha nada. Algumas vezes precisei atravessá-lo para visitar um amigo que morava num sítio na outra margem, por ser a outra opção uma caminhada de uma hora e meia fazendo uso da ponte. Esse atalho era uma jangada arcaica presa a um cabo de aço aéreo para vencer a correnteza bravia nos cinquenta metros da travessia, sem falar da ojeriza que me causavam o toque da água nos pés e o mau cheiro natural de lixo que me invadia as narinas. Por esse rio a cidade ganhou o título de Flor do Una. Vê-se bem que títulos não lhe faltaram no decorrer dos anos, e este outro, o de Terra dos Poetas, vem do fato de ter sido lá que nasceram Ascenso Ferreira e Hermilo Borba Filho, sendo o primeiro de maior renome, amigo de Manuel Bandeira, e partícipe da primeira geração do Modernismo.

É de lá também que tenho lembrança de dois exemplos distintos de políticos, dois prefeitos de estilos e propósitos diferentes. O primeiro foi inesquecível pela “honra” de ter comandado o executivo local em pleno centenário de emancipação política. Armou uma semana de comemorações de toda sorte, indo de inaugurações, missas, discursos à profanações. Por sua “culpa”, o ano de 1979 entrou para a história local, não menos que o seu pronunciamento ao final dos festejos, quando se desculpou pela “humilde” festa, e prometeu no próximo centenário fazer algo à altura da importancia da cidade. O segundo bem poderia se chamar de trabalho. Um homem de visão, fazedor de obras, e era mais que natural vê-lo em suas botas cano longo, seu traje tradicional de mescla azul, seu chapéu de Panamá e os indefectíveis suspensórios, enfiado na lama junto com as máquinas e seus trabalhadores. Hoje, minha cidade está aos cacos, sobrevivendo como curral de políticos sem escrúpulos, coronéis modernos que pagam dez tostões por um voto. As usinas viraram sucata, o rio virou emissário da poluição rumo ao mar, e alguns a chamam de cidade do “já teve”.

À minha época havia dois cinemas, um bom campo de futebol, um campo de aviação, belas praças, e sossego. Atualmente, no campo das artes, por assim dizer, temos um cantador cuja fama não sei até onde se estende, mas fato é que este iniciou-se na cantoria imitando o hoje indefeso Luiz Gonzaga, e a voz até que lembra. Dizem a boca pequena que Santana renega as origens, mas seu forró pé de serra segue firme. Outro cidadão palmarense, de fama no âmbito domestico, atende pelo singelo apelido de Lulica, cantor de última hora e de talento duvidoso. Certa feita tive o prazer inefável de vê-lo encher uma linguiça indigesta num desses festivais de interior entre um show e outro. E foi graças ao advento tecnológico do compact disc que o mesmo gravou seu primeiro cd, que logo tratou de distribuir nas melhores casas do ramo.

Eis que num desses domingos sem propósito, um ladrão saiu para o trabalho na surdina. O gatuno achou de arrombar justo uma loja de discos, e fez a festa, levando cds, dvs, fitas k7 e afins. Imaginem qual não foi o susto do proprietário naquela segunda-feira indigesta ao se deparar com o prejuizo. Chamou a polícia que logo o atendeu e lavrou o famigerado boletim de ocorrência, claro, após a perícia, feita pelo empírico investigador Pereira. Ninguém tocou em nada até sua chegada; prancheta na mão, com seus olhos de lince, e o faro de perdigueiro, Pereira logo deu o veredicto, quando em alto e bom som lascou:

“Já tenho a pista!”

“Sério? Tão rápido?”, indagou o proprietário.

“O larapio é da cidade!”

“Oxe, e como o senhor sabe?”

“Ele não tocou num único cd de Lulica!”

terça-feira, agosto 23, 2005

Como, Te Amo?!

Huuummm... e-mail do Marcos!

...

Hã?!

...


Não acredito!

Ele não poderia ter feito isso...

Como assim, me ama?! Como mandar esse e-mail bobo... “Por tudo que você desperta em mim, Te Amo!”

Enlouqueceu?! O que faço com isso?!

Meu Deus... Tava tudo tão bom... Será que não tenho direito a um pouco de paz? Da tranqüilidade da incerteza, dos encontros sem maiores promessas...

Vou deletar!

Será que ele vai me perguntar se li alguma coisa hoje à noite?

Logo hoje, que vou fazer aquela lasanha que ele gosta?

E o vinho? Nem comprei coca-cola...só ia colocar duas pedrinhas de gelo dessa vez...

O que ele vai achar do DVD do Chico, então?! Não era presente...sei que ele gosta, só isso.
Tem algum mal em lembrar de alguém, em um dia que não seja o aniversário? Tem?!

Aiii...meu vestido coloridinho...tááá...o decote é pra ele, mas e agora? Uso o blazer preto da minha mãe?

Deleto ou não deleto....

As fotos!!! Isso eu posso deixar pra mostrar amanhã...não deu tempo revelar, sei lá!... a careta de macaco nem ficou engraçada... aquela cara de tarado dengoso me olhando na praia neeem ficou convincente...

Marcos acabou de entrar.

Marcos diz:
Oi, docinho!

Flávia responde:
Oi, bebê!

Marcos diz:
Entrei rapidinho só pra falar que vou ter uma reunião daqui a pouco...assim que acabar vou te ver!

Flávia responde:
Demora não?! To com uma sodadona deeeste tamanhão!

Marcos diz:
Sodadona de muito?

Flávia responde:
De muitão...

Marcos diz:
Demoro não, meu docinho! Minha sodadona é maior que a sua...( Você nem imagina! Rsrs...) Te Adoro! Bye!

Flávia responde:
Rsrsrs...menino... Eu Tb! Bye!



Mas ele escreveu te adoro... será que desistiu de me amar? Nem perguntou sobre o e-mail...

Então por que me falou tanta coisa?! Logo ele... que deixei se aproximar depois de tanto tempo sozinha....depois dessa confiança que jurei nunca mais ceder a ninguém?!

Depois de dizer ao meu coração pra não se preocupar... que agora era pra sempre?

O que eu faço?!

Quer saber?! Vou imprimir essa mensagem... Te Amo... Ele não vai ter como negar!

segunda-feira, agosto 22, 2005

A trilha sonora da tua vida

Você entra em casa, e teu dia foi cheio e intenso. E aqui a palavra "intenso" está sendo usada em seu sentido mais negativo. Joga tuas coisas no primeiro móvel que te aparece pela frente, e ainda assim continua sentindo em si o peso do mundo inteiro. E toma um copo d'água, e o peso não vai embora... nem teu quarto - pedacinho de paraíso na Terra, onde você conhece cada palmo - te traz alento. Mas é pra onde você vai. Desliga as luzes, e vestido como chegou da rua, larga-se na cama. Agora, na escuridão de teu mundo, é como se só existissem você e quaisquer que sejam os teus demônios. Há um ventilador logo ali... você só tem de levantar-se e ligá-lo. Mas os demônios que o atormentam não seriam dignos do nome se te permitissem este pequeno prazer... e cá está você, rendido à própria inércia... Já o som... bom, o som é diferente... ele está logo ali, a um estirar de braço. Você o liga, e nota com olhar vazio a dança das luzinhas coloridas, prenunciando o que está por vir. E que vem... devagarinho, de início sussurado, mas num crescendo constante, em que o sussurro se torna em grito, e depois em lamento triste e sentido. E é neste momento que tua vida vira toda ela Janis Joplin, e o barulho gutural vai tomando conta, e você vai entorpecendo-se devagar, e tem vontade de beber alguma coisa. E depois vem o blues... a melodia negra sofrida e triste. A vida começa a parecer um pouquinho menos fodida, e quando você nota, as lágrimas já escorriam há tempo por teu rosto. Pois é... pelo menos por esta noite você conseguiu exorcizar teus demônios...

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E lá está você, de frente pro rosto daquela que foi sempre a mulher de tua vida. A "mulher da vida de alguém" parece a coisa mais datada e piegas do mundo, e é exatamente o que você pensa enquanto o início de sorrisinho sarcástico começa a aparecer em teu rosto pragmático ao vê-la aproximando-se. E daí o turbilhão de emoções passa por tua cabeça é tão grande e tão inesperado que você não sabe bem o que dizer. Não depois de tantos anos. E gagueja... Gagueja?? Droga... Enquanto conversam, com toda a aura de aparente tranquilidade ao redor de vocês (e que você nem sabe bem porque te remete à imagem de um conto que leu, que tinha um lago com calmaria na superfície, mas cheio de turbulência na parte mais profunda), você vai lembrando de cada pequeno detalhe do jeito como a conheceu... a primeira vez em que teve coragem suficiente pra se assumir encantado de verdade por alguém, numa relação cujas bases de sustentação te eram de natureza completamente nova. Enquanto conversam você também observa o par de olhos enormes e melancólicos, e comporta-se como um adolescente nervoso e vacilante. Afinal, é a mulher da tua vida... e são as memórias das músicas que tocavam sempre que você pensava nela que te levam aos solos rápidos e harmoniosos de Dire Straits, com a voz grave do Mark Knopfler, ou à calorosa música do Gonzaguinha.

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4 da manhã. Você já está tão alcoolizado que até os movimentos mais simples como um aceno de mão estão comprometidos. O boteco é o pior pé-sujo que teus amigos conseguiram encontrar, e a forma como é decorado é de gosto extremamente duvidoso. Tem o colorido forte que provavelmente teria um cabaré imaginado pelo Almodóvar, com pinturas e bibelôs espalhados por todos os cantos, que oscilam entre a beleza simples da cultura peruana e a ostentação excessiva da decoração pretensiosa demais. A noite foi comprida e agitada, e vocês dividem espaço com os primeiros trabalhadores que começam a chegar e pedem seus cafés fortes e quentes, com os quais conseguem suportar uma manhã inteira de lida. Chega o prato de feijoada, tão quente que se forma uma cortina de fumaça na atmosfera já pesada, com o cheiro característico de cigarro e perfume baratos. A comida é gordurosa demais, mas extremamente saborosa... e você se pega pensando em que colocação poria aquelas pessoas numa escala imaginária de cuidados com o colesterol. E ali tem tudo o que você gosta. Feijão, cheiro de café, toalhas de pano quadiculadas, cerveja gelada e a sensação de vista nublada que vai precedendo lentamente o adormecer quando se está bêbado. E nesta hora sua vida é toda o som repetitivo dos lambadões agudos demais, ou dos boleros dramáticos e chorosos. Nesta hora, e levado por esta ambientação, você percebe quão importante é a Celia Cruz e toda a música cubana e caribenha na tua vida.

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E no final das contas você pensa... Quer saber? Se existe um deus, que ele seja música.. e que nos encante e abençoe em forma de melodia, porque é das poucas coisas que valém à pena nessa vida sem graça.
Amém.

(e este é outro texto que vai merecer uma segunda parte)

domingo, agosto 21, 2005

O Taxista

Ele, motorista de táxi na praça de Porto Alegre há quase 40 anos. Sujeito de muito respeito e conhecido por todos em seu ponto. Homem casado, dizem que jamais pensara em trair sua esposa. Uma mulher feia que doía. Tinha a cara da fome e o corpo da sede. A mulher era tão feia que, depois que a idade chegou, o médico a proibiu de se olhar no espelho logo pela manhã, pois tinha pressão alta e não poderia sofrer grandes sustos. Tão feia que Diabo já tinha combinado com Deus que não queria aquela mulher no inferno nem fudendo.

Mas ele, homem honrado e gaúcho bravo não se permitia qualquer luxúria. Viveu ano após ano com aquela fôrma de fazer monstro. Coisas da vida.

Ela, ninguém sabe a profissão. Também não interessa muito. O fato é que ela é uma morena que pára o trânsito. Pernas torneadas, cintura fina, lindos glúteos e seios tão fartos que matariam a fome de um bezerro. Tão linda e gostosa que não foi feita por Deus, porque sua beleza é pecado e Deus não peca. A morena era tão boa que foi feita pelo Diabo, só para se vingar de Deus. Ela era tão gostosa que o Conselho de Ginecologistas do Rio Grande do Sul solicitou ao juiz da cidade que emitisse uma liminar proibindo que ela se consultasse com ginecologistas homens, para evitar constrangimentos na categoria.

- Pois não dona. Qual o destino (minha cama, minha cama, minha cama!)?
- Leve-me para a cidade baixa, bairro do Bonfim.

A morena senta-se com seu projeto de demônio (digo, filho) no banco detrás do carro. Com aquela mini-saia seria quase impossível o taxista prestar qualquer atenção no trânsito. Seus olhos só miravam aquele par de coxas deliciosas. Mas o maldito menino atrapalhava a visão do paraíso. O menino pulava, gritava e cantava músicas de Eliana Dedinhos sem parar. Qualquer uma ficaria louco!

- Você não quer sentar no banco da frente com o tio?
- Oba! Mamãe, eu posso sentar no banco da frente?
- Pode, mas não mexe em nada guri!
- Ta bom mamãe.
- Seu filho?
- Pois é. Um menino de ouro!
- NÃO MEXE NO SOM guri lindo. Aliás, pode mexer que o tio não liga.
- Tio, o que esse botão faz?
- Esse não PODE... podia apertar esse porque esse chama o bicho papão!
- Bah tio, eu não acredito mais em bicho papão...
- ...
- A senhora mora no bonfim?
- Moro sim senhor. Mudei para lá depois que me separei. E o senhor, é casado?
- Não, sou divorciado. Sabe como é, né? Depois de anos com a mesma mulher a relação desgastou e só sobrou amizade. Resolvi conhecer novas mulheres, ter novas experiências. Viver minha vida! (eu quero você, eu quero você).
- Que bom! Eu estou solteira também. Nesses dias, onde ninguém é de ninguém, está difícil arrumar um bom partido, um homem sério.
- Bah, isso é uma grande verdade. Não fazem mais homens como eu hoje em dia. Essa meninada de hoje só pensa em sexo, nada de compromisso.
- Mamãe, o que é sexo?
- Nada guri, cala a boca e fica quieto senão volta para o banco detrás.
- ...
- Mas e o senhor, tão charmoso, vivendo sozinho?

Pronto, agora ele tem certeza que a mulher está ganha. Basta arrumar uma forma de se livrar do capetinha e pronto! A gostosa seria dele.

- “Posso abrir a porta do carro e empurrá-lo”, pensa. Mas provavelmente a mãe não daria o pastel de cabelo para ele. E ele vai durante toda a viagem flertando com a morena gostosa, olhando suas coxas e tentando permanecer no trânsito. Dizem até que, depois de alguns anos, seu “amigo” deu sinal de vida.

Em sua mente suja, aquela mulher estaria na cama com ele em alguns minutos. E ela cruzava as pernas, fazia caras e bocas. Provocava abertamente aquele homem, que sentia que seu zíper poderia estourar a qualquer momento.

- “Bah, que mulher gostosa. É hoje que eu vou fazer uma festa regada à carne mijada tchê”
- Por favor, o senhor vira a direita.
- Sim senhora. Sua casa?
- Não, estou deixando meu filho na casa do pai dele.
- “Bah, me livrei do guri. Agora é só abraçar a xavasca e ir pra galera”.
- Pronto, o senhor pode parar aqui que eu vou descer.
- A senhora vai continuar a viagem? Se quiser posso esperar e não cobro mais por isso!

Nesse momento o homem já nem disfarça seu interesse naqueles seios lindos. A única coisa que pensa é ter aquela égua cavalgando nele, enquanto ele sente todo o fogo da juventude que sua mulher apagara desde a juventude, aceso novamente.

- Não senhor, preciso conversar com meu ex-marido. Problemas de pensão, o senhor deve saber como é!
- Bah, eu sei sim...
- Bom, obrigado pela corrida e pela gentileza.
- Não por isso senhor. Deixarei meu telefone com a senhora. Se precisar de um táxi basta me ligar (se quiser foder gostoso também pode me ligar).
- Claro que ligo senhor. Vamos Dagoberto, você vai ficar com seu pai. Agora dê tchau pro vovozinho e vamos embora.
- Mamãe, mas ele não é meu vovô. Meu vovô tem cabelo!
- Vamos moleque, larga de ser chato.

Diz a lenda que o taxista chegou em casa, deu uma com sua mulher como não fazia desde sempre e depois nunca mais foi visto rodando na praça de Porto Alegre.

Coisas da vida!

P.S.: Já vou logo pedindo desculpas pelo atraso e pela baixa qualidade do texto. Esse foi escrito agora pela manhã, durante o vôo para Porto Alegre.

sábado, agosto 20, 2005

Quem quer ganhar lambidas precisa assumir o risco de ser mordido.


“Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor”

Já dizia Fernando Pessoa em seu poema Mar Português. E pra passar além da dor, é preciso coragem.

Coragem não é ausência de medo, é resistência ao medo. Não lembro quem disse isso, mas há anos venho repetindo isso a mim e aos meus amigos.

Coragem é fundamental. Arriscar-se é preciso.

Dia desses estava a conversar com um amigo. Um amigo especial, desses que a gente encontra uma única vez na vida. Estou falando de você mesmo, Múcio. Mas não se preocupe que não vou escrever sobre você. Isso foi só uma declaração pública de carinho e amizade. E é preciso coragem para fazer isso. Esse texto é sobre medo e coragem. Pois bem, ao conversar com Múcio num belo dia de sol, sonhos e delírios, falei:

- Quem não tem cão... (adoro parênteses e reticências...)

- Não se arrisca a ser mordido, responde ele.

Daí eu me vi criando a seguinte máxima: “Quem quer ganhar lambidas precisa assumir o risco de ser mordido”. Passei a usá-la no messenger. Todos os meus amigos riram. Ainda bem, é preciso coragem para rir. Rir de si mesmo e consigo mesmo.

É preciso coragem para rir e chorar. E para assumir o riso e o choro. É preciso coragem para nascer, crescer e viver. Pode parecer verso pobre de música barata mas é a essência daquilo em que acredito. É a essência do que vivo. Em um mundo onde a vida do ser humano tornou-se tão banal que agora é moeda de troca, só com muita coragem mesmo.

Coragem mesmo para acordar todos os dias e levantar da cama, apesar dos problemas que certamente aparecerão.

Coragem para trabalhar duro, ganhar pouco e viver com a incerteza certa do amanhã.

Coragem para ligar a TV ou abrir um jornal ou revista. É preciso coragem para ver/ouvir todas essas notícias que aí estão atravancando nossos caminhos. É preciso coragem para não aceitar isso tudo como normal e não cruzar os braços diante de tanta imundície. É preciso mais coragem ainda pra aceitar o fim de um sonho. Mas é preciso também acreditar que o fim de um sonho pode ser o início de outro.

É preciso coragem para atravessar uma passarela quando todos os seus músculos tremem de pânico.

Precisa-se de coragem para amar e se deixar ser amado depois da primeira desilusão. Até mesmo um coração esfarrapado pode amar de novo. Mas é preciso coragem para dar a cara à tapa.

É preciso coragem pra dizer adeus às pessoas que amamos, sobretudo quando esse adeus é para sempre.

Precisa-se de coragem para aprender a olhar para trás e não lamentar os erros cometidos. Coragem para ver o passado e aprender com nossos erros, maiores ou menores. É preciso coragem para aceitar que o tempo passa e não há anda que possamos fazer para impedir isso.

É preciso coragem para não se arrepender.

Precisa-se coragem para encarar os anos futuros. E para aceitar também os erros futuros. Eles são inevitáveis.

É preciso coragem para aparecer aqui todos os sábados e despejar minhas palavras na rede, onde tantos navegam. Mas também é preciso muita coragem para lê-las. Parabéns a quem aqui chegou.

quinta-feira, agosto 18, 2005

Por uma causa justa.

A situação se configurou daquela forma porque a irmã mais nova dele, Cecília, contou tudo para o pai. Quando ele chegou em casa, seu pai estava na mesa da copa, com um whisky e um cigarro.
- Senta aí, filho, que nós precisamos conversar.
- Boa noite, velho.
- É. Boa noite. Tá indo para a faculdade?
- Tô. Daqui a pouco. Passei aqui porquê precisava falar com o senhor.
- Eu também preciso. Sua irmã me contou que você anda faltando umas aulas...
(Essa pirralha dedo-duro.)
- Tenho, pai. Estou envolvido com o movimento estudantil. O que eu queria falar com...
- Movimento estudantil? Tá fazendo parte de algum DA, DCE, essas coisas?
- É, na verdade a gente está concorrendo com uma chapa, temos orientação marxista, e eu inclusive queria...
- E aquela conversa que a gente teve sobre você encontrar um emprego?
- Pois é, pai. Mas eu sinto que esse é um momento muito importante na minha vida, e a gente tá passando por uma fase muito delicada com essas questões como a reforma universitária, a diminuição das...
- Gustavo, não precisa entrar em detalhes, não. Olha só: eu acho muito bonito isso tudo, esquerdismo, socialismo. Eu voto na esquerda. Até sinto, de verdade, orgulho por você estar com essa consciência política. Mas eu não vou ficar bancando isso não.
- Mas, pai...
- Deixa eu te esclarecer uma coisa: aos catorze anos seu pai trabalhava entregando jornal na vizinhança, e lutou muito para te dar essa vida confortável que você tem hoje. Mas eu não vou ficar sustentando repetência sua, não. Se você quiser fazer suas coisas, tenha seu dinheiro para arcar com elas.
- Poxa, pai. Eu sinto que eu posso fazer alguma diferença no mundo, sabe? Eu sei que o senhor não pôde participar no seu tempo, por causa do trabalho, e tal. Mas veja por outra perspectiva! Agora, nós dois juntos, eu como agente e você como mecenas...
- Hahaha... Desculpe. Hehe. Desculpe, filho, sei que não é piada, mas a resposta é não.
- Olha, pai, eu inclusive vim pedir hoje para o senhor uma grana, para ajudar a chapa. Que hoje vamos fazer uma manifestação e precisamos comprar uns apitos, imprimir uns panfletos e tal...
- Não vou dar nada.
- Pô, pai. O que é que a Luísa vai pensar de mim?
- Luísa?
- É. É uma gatinha lá, do movimento. Sabe? Não é por isso que eu participo, claro, mas vai pegar mal. Eu garanti que eu conseguia alguma coisa.
- E essa menina tá dando mole para você? Já pegou?
- Tá na fita, mas ainda não peguei.
Neste momento, Cecília, que ouvia encostada na porta, sai correndo para o quarto, abre o orkut e vai em busca da página de recados da Luísa, a partir da lista de amigos do irmão. Ao encontrar, relata detalhadamente, e em letras vermelhas, a história do "tá na fita". Na copa, a conversa se conclui.
- Olha, bicho. Pode ir esquecendo essa história de mecenas. Aliás, para te incentivar a arranjar um emprego, vou diminuir, em quinze partes, sua mesada, até chegar a zero. Significa que daqui a quinze meses, você não tem mais mesada.
- Mas, pai...
- Hoje eu posso te dar vinte contos, para você não ficar mal lá. Mas veja isso como uma bondosa concessão do sue pai. E excepcionalíssima.
- Vinte reais? Mas eu estava pensando em...
- Nem diga, que eu não quero ouvir. E se pique, que já tá na hora da sua faculdade.
- Tá.
- Ó!
- Diga?
- E jogue duro lá, com a Luísa.
Quando Gustavo chega junto da galera, percebe que Luísa está olhando diferente para ele. Não imagina o porquê, ou a gravidade da decepção de ver o orkut, na sala de informática, acompanhada da Helena e da Patrícia. Se comporta como o usual.
- E aí, Taio? Conseguiu a grana com o velho?
- Vinte contos, só. Quanto vocês arranjaram aí?
- No total, com os seus vinte, setenta e cinco reais.
- Acho que é melhor a gente só pegar o baseado, vinho e cachaça, que a onda é longe e a gente ainda tem que botar gasolina no carro do Léo...
O colega chama ele no canto.
- Tá tudo armado, bróder?
- Hoje não tem erro. É bucha de terno garantida...

[]´s

quarta-feira, agosto 17, 2005

La Belle de Jour

Lembro-me com clareza de quando a vi pela primeira, e única vez, sentada no velho píer de madeira rústica da marina da Praia Velha. Tinha nos olhos a calma diáfana de quem vagueia por sonhos alheios, contemplava o horizonte como se buscasse verdades na mais ínfima parte daquele mar colossal que à sua frente deitava ondas como o serviçal mais obediente. Dessas ondas respingos lhe chegavam incólumes aos pés, como se implorassem sua atenção, e em vão caíam por terra. Parei por um tempo despercebido quase que ao seu lado. Nada que eu fizesse a tiraria daquele êxtase contemplativo, e que naturalmente não vinha das coisas vistas, mas, das sentidas. Tentei desviar os olhos daquela verdadeira graça, e foi uma missão difícil; confesso. Entre admirá-la e tentar desvendar o motivo da sua inércia, optei pela primeira. “Inefável visão!”, e assim definiria tudo numa frase. Mas a minha visão, como que automaticamente, enviava palavras à boca que me saíam em murmúrios, apesar de que o seu silêncio seria inquebrantável àquela altura. Resmungava elogios surdos em sua direção, não por atitude de galanteios, não, não cabiam tais coisas ali. Era mesmo um descontrole endossado pela emoção de vê-la.
Morena de uma cor que não se descreve; nem jambo, muito menos canela; era morena, uniformemente bela. Os cabelos eram a única coisa que tirava da bela a idéia de estátua, pois esvoaçavam ao sabor do vento. Eram cacheados como sem rumo, um emaranhado de beleza ímpar em tom castanho. Seu rosto taciturno e belo tinha o formato arredondado das musas históricas; ornado por negros olhos amendoados e uma boca cujos lábios eram um convite ao deleite. As pernas dobradas se guardavam entre os braços e distraidamente uma das mãos acariciava um dos pés, num breve momento em que ousou mover-se, além das melenas. Seu colo era terno e doce, como se preciso fosse provar que doçura existiria ali. Creio que mais de uma hora se passou sem que me percebesse, até que a primeira estrela surgiu no céu como um relógio a badalar na meia-noite, e a moça deu por mim ao seu lado numa distância segura. Como no despertar de um sono bom ela percebeu que o mundo era muito mais que aquilo que secretamente estava a deleitar. Sorriu-me discretamente como a me achar por bobo, e nem sequer imaginar o quão prazeroso seria o “filme” a que assistia em sua solidão mental. E seu sorriso me foi então a última mostra de que a beleza é uma ciência sem limites, e que todos somos seus desbravadores, pois querendo ou não, estamos sempre elastecendo suas extensões ao encontrar mulheres assim. Levantou-se, e quase que sem dar ao chão o prazer de por ela ser tocado saiu, numa espécie de levitação etérea, se foi sem deixar culpas. Só saudades...

terça-feira, agosto 16, 2005

Eu, que nada entendo de Futebol...

Falta! Juiz ladrão!
.....graaaaaaaaaaaaaaaaççççaaaaaaa!!!! (Sangue de Cristo tem poder, está amarrado em nome de Jesus!)
A TUI arrêa! Arrêa! Arrêa, Arrêa, Arrêa!

Nunca tive muita intimidade com futebol. Se alguém um dia me perguntar em uma conversa muuuuito “interessante”: - E aí, gatinha, ÊÊÊÊÊAAA???? Eu, calorosamente responderei ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊGGGGOOOOO!!!!... um dialeto... onde o que importa é o retorno estrondante ...
Não sei nome de ninguém... Na verdade, sou fã do meu irmão, acabei descobrindo isso. Torço por quem ele torce e tá tudo resolvido. Ô falta de personalidade!

Até me arriscava em alguns clássicos baianos. Voltava rouca, com a garganta sofrida e o coração encantado... É demasiadamente mágico estádio lotado, vibrante. Deixei de ir a algum tempo... minha adrenalina não suportou o sobe e desce por causa dos gols e das brigas. Mas é muito bom... sem falar que é o maior m² de homem que existe! Parece supermercado de pinto... Eu, devidamente (será?!) encoleirada na época, tinha apenas um olho para o escudo no peito ao meu lado e o outro no gramado.

Mas gosto mesmo é da seleção... futebol, vôley, basquete... verde e amarelo, tô eu gritando, xingando e fazendo promessa. Já chorei muito em Copas do mundo... lágrimas de alegria e tristeza revoltantes. Vestia literalmente a camisa... patriotismo na pele e no gogó!

De tempos em tempos, me apaixonava por um jogador. Para os conquistadores do meu coração, os melhores dribles, atuações e comentários. Sem falar dos grandes deuses, consagrados pela divina bola!

Futebol é gingado, graça, paixão... Platéia de pobre e rico... Palco de rico e pobre... Enredo de sonhos. Confundo por muitas vezes o sentido empregado aos valores... Cascatas de milhões no fundo da rede... Disparate justificado no baile das pernas dos Ronaldos...

Sei não...

Assim como não sei todas as causas amarelas e vermelhas dos cartões. Talvez, acredito, devessem estender suas funções além das concentrações e mandar para o banco ou direto para o chuveiro, os Edinhos, Romários e Júlios Césares que de bolsos abastecidos engolem a bola ao serem manchetes de jornais, não por seus talentos futebolísticos, mas pelo envolvimento com outro tipo de jogada... partida esfumaçada e pesada. Nem imaginaria Graham Bell tanta utilidade para seu aparelhinho assim! Enquanto se avaliam as verdades...
E hoje, ainda sem a sabedoria dos torcedores fiéis, escuto o Pelé, mostrando que seu talento não tá na voz, entoar um desafinado:

“Quem sou eu Maradona, quem é você? Você quer ser eu, Maradona, eu quero ser você!”.

Do outro lado, um Maradona, agora apresentador de um programa de televisão, misto de Chacrinha, Faustão e Globo Esporte, já refeito das artimanhas que trazem os gols mal aproveitados.

E ainda, assim como moleques no campo de barro, brincarem com toques de bola perfeitos não prejudicados pelo tempo... Me emociono. Não tem placar... Tem história... Tem nações avistadas da janela... Tem crises econômicas... Tem exemplos... Tem vitórias além das glórias... Tem rivalidades... Tem maestria... Tem respeito... Tem o eco coreografado das torcidas através das majestades que vejo.
Eu, que nada entendo de futebol.

segunda-feira, agosto 15, 2005

De quem deixou a segurança de seu mundo por amor

- Puxa, mas tem coisas que não mudam, não?
- Como assim?
- O Paulinho e o resto do pessoal. Como bebem e falam alto! Olha a bagunça que está a casa!
- Ah, bobona... fala assim não... são meus amigos e gostamos tanto deles.
- Gostamos, feião? Até onde lembro, não era exatamente de aceitação minha reação quando vocês resolviam sair procurando barzinhos toda noite de sexta pra encher a cara até cair, e ainda resolviam me levar junto, como se fosse um convite pra um jantar romântico.
- Puxa, você tá sendo injusta... afinal, quantas vezes fomos às peças que você gosta?
- Hmmm (não é possível que ele esteja se referindo à única vez em que foi ao teatro comigo, e cochilou durante a segunda metade da peça)
- Ei, deixa isso pra lá, vai... hoje não é dia de a gente discutir por causa disso. Deixa aí esses pratos... lavamos amanhã pela manhã. A propósito... acho que o pessoal lá do trabalho tá preparando alguma coisa de surpresa pra mim amanhã, bobona.
- É? que bom! (Ótimo... outra festa, pra chegar bêbado...). Se for chegar tarde avise antes, tá? Minha mãe ficou de vir passar o dia conosco, e se você demorar pra voltar, peço que ela durma aqui.
- Tua mãe? Dormir aqui amanhã? Ahhh...
- Vai começar?
- Não, meu amor. Não vou começar... mas você sabe tanto quanto eu como tua mãe implica comigo, né? Foi assim desde a primeira vez em que você me levou a tua casa. O jeito como falo, a forma como me visto. Se vacilar, acho que talvez eu nem fosse a pessoa que ela teria escolhido pra ter casado contigo.
- Não era mesmo...
- E até dos meus amigos ela fala! E da música que eu escuto... lembra aquela serenata que eu fiz pra você, no nosso primeiro ano de namoro? Como ela implicou!! E pensar que teu pai gostou tanto da idéia! Ei, "Não era mesmo" o que?
- Ela não gostava mesmo da idéia de que nos casássemos, feião.
- Isso é sério? Ela falou isso pra você??
- Numa daquelas conversas dela. Que não era ainda a hora... que você era muito novo... imaturo...
- Imaturo?!? Eu ralo desde os 16 anos! Batalhei tudo que tenho, enquanto a maior parte do pessoal com quem eu andava ainda estava debaixo das asas dos pais. Ralei pra poder ter um trabalho razoável pra quando começássemos nossa vida juntos, juntarmos nosso pé-de-meia e todo o resto, e vem ela dizer que sou "imaturo"?!?
- Ei, ei, ei! ELA te acha imaturo... e EU estou casada contigo, feião! Acha que seu eu compartilhasse das idéias de minha mãe estaríamos aqui agora?
- Imaturo... ora... (Velha idiota!)
- Ah... fica com essa carinha não, vai...
- Tô com carinha nenhuma não. Vai pro quarto que vou ficar aqui lendo um pouco.
- Lendo, menino?? É nossa primeira noite de casa nova, e você vai ficar aí lendo, com essa cara emburrada?
- É. Faz bem parte de minha imaturidade...
- É, faz mesmo!! Isso de se esconder atrás de livros quando as coisas não são de teu agrado é bem você mesmo!
- ...
- Não vai falar nada?
- ...
- Ah, eu não aguento você! Quer saber?!? Vou dormir mesmo!
- ...
- Ei, bobona.
- O que é? (Agora veio pra cama, foi?)
- Trouxe café quentinho com bastante açúcar pra tomar antes de dormir, do jeito que você gosta.
- Do jeito que VOCÊ gosta, né menino? Desde quando eu tomo café?
- Ah... era só pra ver se conseguia ver um sorrisinho meio de canto de boca em teu rosto... Assim como esse que estou vendo agora! O teu é esse suco aqui. Ei, Desculpa por aquela hora, vai... aquelas coisas me tiraram do sério. Você sabe o quanto te gosto, e nem cabe ficar repetindo isso a toda hora. Quero você. Estar aqui assim, do teu lado me faz um bem tão grande que eu nem sei se saberia explicar. Venho tentando fazer tudo certo, e acho que no final das contas é só como uma forma de te "merecer" melhor. Mas quer saber? A verdade é que estou com medo... com muito medo.
- Eu também estou, menino. Antes era só eu e minha família... era só você e a tua. Agora é meio como se só tivéssemos um ao outro. Como se tivéssemos só a nós mesmo como apoio. E é ruim a sensação de não saber o que vem pela frente...

- E agora? o que acontece?
- Não sei...
- Ei, vem cá, vai. Me abraça! Bem forte.
- ...
- ...

O texto é simples porque deve ser simples... e é pra todos os Feiões e Bobonas deste mundo, que vem tentando se encontrar e começar alguma coisa única e bonita juntos. Adultos jovens e cheios de sonhos que - como diria lá o outro - deixaram a segurança de seus mundos por amor.

domingo, agosto 14, 2005

A poesia e eu

Odeio poesia. Não tenho saco para ler nenhuma. Nunca consigo gravar uma para recitar depois. Bloqueio total e absoluto. Pode ser feio realizar tal afirmação, mas é a mais pura verdade. Mas vamos aos fatos...

A poesia que eu não gosto é aquele com conceito clássico. Uma frase depois da outra, com rimas A-B-B-A-ETC, com frases curtas e que fale de qualquer coisa. Até gosto de algumas do Gregório de Matos, mais pela baixaria que por qualquer coisa. Aquela “putinhas franciscanas” era a mais divertida da escola (quando dizer putinha era proibido).

Salvo também da minha crítica alguma coisa do romantismo, algumas parnasianas e assim vou salvando.

A poesia que gosto é aquela misturada nos textos, nas músicas. Porque são livres. Não gosto de regras, porque o amor não depende de regras para existir. Ele existe e ponto final. Assim como as críticas e qualquer forma de expressão.

Houve um tempo em que eu era metido a ser poeta. Escrevia e colava, anonimamente, no mural da empresa em que trabalhava naquela época. Certa feita vi dois senhores parlamentando (parlamentando!) acerca da minha obra. Um deles, advogado, defendia com entusiasmos a minha poesia, dizendo que havia sentimento e que era algo bonito. Já o outro formado em letras, dizia que meu texto não tinha métrica e não respeitava nenhuma convenção da língua para ser considerado uma poesia. Ele disse que era apenas um texto rimado.

Como eram dois senhores que eu conhecia e gostava, me identifiquei como autor do tal texto rimado. O rabugento disse que o texto era bom, mas que daquele jeito não era nada, tinha que ter métrica e rima. Eu disse que não acreditava que o sentimento se media para ser escrito, apenas escrevia. E ele me lançou um desafio: escrever um texto com métrica.

Como eu sou chato e adoro desafios, disse que faria em 15 minutos o que ele quisesse. O corno rabugento disse que eu escrevesse, em 15 minutos, um soneto. Um soneto? Eu nem lembrava mais que porra era soneto, mas aceitei o desafio.

Fui ao Cadê! (naquela época não havia google), e pesquisei sobre a forma do soneto e li alguns do Camões (era melhor começar com o mestre). Quando eu tinha menos de 8 minutos para escrever o tal soneto, saiu isso da minha cabeça:

Soneto de Desmetrificação

Preso à métrica, fico fero.
Dentro dela: escrevo a contragosto.
Quando amo, digo que te quero.
Marginal sou, mas sem desgosto.

Em versos, meço traço reto,
E vejo armado nobres sentimentos.
Seja o amor ausência de pensamentos,
Como podes tu pensar dizer correto:

Às regras não me prendo.
Não condeno os poetas que falam por medidas
Mas, aos certos, eu me rendo
E o que eu disse já não presta
E agora já são frases descabidas.

Terminado o tal soneto, com uns 2 minutos de atraso, sai para mostrar primeiro para o advogado se era de fato um soneto o que eu tinha escrito. Ele disse que sim e ainda disse que era muito bom (para meu ego explodir).

Fui lá todo serelepe mostrar para o professor de português da empresa e a porra do velho corno e rabugento (cada vez que falo dele aumento os adjetivos) disse: é, a forma é de soneto, mas ainda falta fechar com chave de ouro, porque os bons sonetos são fechados com categoria e você entrou em contradição ao dizer que não gosta de métrica mas defende os poetas que assim escrevem.

Bom, eu poderia ter dito que chave de ouro de c* é r***, mas achei melhor sorrir amarelo e aceitar que, pelo menos, de texto rimado eu escrevi um texto que tinha forma de soneto.

Odeio poesia.

sábado, agosto 13, 2005

Re-apresentação

E como sou mutante, depois de 1 mês e pouco de Expressões Digitais resolvi me reapresentar. Sou matéria instável.

Dou um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra não sair. Tenho 26 anos, natalense, morei em muitos lugares diferentes e conheci muitas pessoas diferentes. Sou sagitariana (!) com ascendente em peixes. No chinês, cavalo de terra. Sou solteira, tenho uma filha cachorra e um filho gato. Sou formada em Eng. Química e também faço mestrado. Uma de minhas frases prediletas (de autoria própria) é: “Ninguém passa impunemente pela Engenharia”. Também estou em crise por não saber o que fazer. Interesso-me pelos mais diversos assuntos, cinema, música, poesia, esportes, informação, Harry Potter (e daí?). E dentro de cada assunto, pelos mais diferentes gêneros. Amo samba e bossa nova, mas também amo pop, rock, blues, jazz. Amo Chico Buarque e sou apaixonada pelo Rappa. Amo os Beatles e Luiz Melodia.

Sou diversas. Não sou perfeita, sou cabeça dura, teimosa, chata e tenho pavio curto. Não pise nos meus calos. Não cometa injustiças na minha frente nem julgue nada sem conhecer. Mas também sou de dar risada, gargalhadas. Rio só do vento passar. Sou sentimental. Não sou tímida. Gosto de escrever. Gosto de namorar. E conversar muito. Sou confiável. Não tenho muita auto-estima, se bem que no momento isso não é lá muito verdadeiro. Tinha depressão a cada dois anos, mas ultimamente estou conseguindo trabalhar bem com isso. Passional com um toque de racionalidade. Eu sou complexa, como todo ser humano deve ser...

Sou várias e nenhuma destas se entendem. Metade das músicas de Cazuza me descrevem. Tenho ideologias sim e acredito nelas. Aliás, acredito na necessidade de tê-las. Sou exagerada também. Amo demais, sinto demais, vivo demais. Tive sim um ídolo na vida. Alguém que me ensinou desde criança o quão doce é o sabor da vitória e o quão duro é o caminho até ela. Alguém que me ensinou muito cedo o quão imensuravelmente grande é a dor da perda. Sou de esquerda quase sempre mas acho o capitalismo necessário em muitas circunstâncias. Amo a Deus e O tenho ao meu lado em todos os momentos da minha vida. Mas não concordo com o que os homens fizeram de Seus ensinamentos, de sua igreja.

Sou vascaína, e daí? Existem outros que sofrem mais. Amo os animais, principalmente os meus animais. Sou a favor das pesquisas com células-troncos. Sou a favor de que se pesquise mais sobre transgênicos. Sou a favor de que se pesquise mais. E sou a favor que não se condene nada sem que se tenha conhecimento suficiente para isso. Sou contra as drogas. Não entendo preconceito ou discriminação. Não consigo entender como a vida do ser humano tornou-se tão banal e por nada alguns decidem que ela deve terminar.

Sou potiguar. Adoro cores. Adoro artes. Amo a liberdade e a responsabilidade de exercê-la. Vivo rodeada de livros. Sou inteligente, criativa, comunicativa, responsável, amorosa, do bem. Sou transformadora. Também sou teimosa, cabeça dura, pavio curto. Detesto injustiça. Soberba. Vaidade excessiva. Sou criança. Tenho fibromialgia. Amo música boa. Imposto é um saco. Não tenho emprego. Não sei dirigir ainda. Amo gibis. E cinema. Adoro cozinhar. E comer. Amo sorvete. Não como fígado. Tenho insônia.

Sou brasileira e me orgulho disso. Amo o mar. Amo rir. Acho que faz bem chorar de vez em quando. Amo meus irmãos. Amo meus pais. Amo as pessoas e acredito na sua capacidade infinita de transformar as coisas, seja pro bem ou pro mal. Acredito no futuro desta nação. E que o futuro seja amanhã, logo ali. Sou feliz.

quinta-feira, agosto 11, 2005

Vôinho.

Naqueles tempos as pessoas eram mais cruas, para as coisas boas e ruins.
Meu tataravô se chamava Pedro. “Vô” Pedro. Percorria de tropa norte, nordeste, centro-oeste do fazendão que era o Brasil naquela época. Meu bisavô foi criado na tropa – Vôinho. O que tem noventa e seis anos hoje.
De vô Pedro até Vôinho foi se juntando uns caraminguás, sempre com o costume de economia e simplicidade.
Já minha bisavó, Alda, era filha de comerciantes. Família burguesa rica de Conquista. Berço de ouro, escola de freira, vestes de seda.
Eis que Vôinho grande administrador, sempre com autoridade entre os homens e na lida com o gado, líder da tropa, começou a juntar um bom patrimônio, sem nunca largar o costume simples. Começou a ter negócios com a família de vó Alda, que fez gosto do casamento dos dois.
Para morar com vó Alda, Vôinho comprou uma fazenda em Itapetinga. Contraído o matrimônio, mudaram-se para lá.
A casa foi feita de madeira e argila dura, na frente de uma pedra para economizar o passeio, e todo o dinheiro que Vôinho fazia, reinvestia em boi, e saia com a tropa pelo Brasil afora. Dois filhos – vó Maria e tio Alcides, e oito anos de casamento.
Conta vó Maria que os pratos eram de barro, e com o uso, furavam. Vôinho não atendia as queixas de vó Alda para comprar louça, e ensinava como botar a farinha no fundo do prato primeiro, e depois o feijão, que não escapava.
Depois desses oito anos, quando num certo dia ele estava viajando com a tropa, vó Alda catou tio Alcides e foi embora, e deixou minha avó sozinha na fazenda, com seis anos de idade. Ela chorou um dia e uma noite, até que uns vaqueiros da fazenda a encontraram, e dela cuidaram até o retorno de Vôinho.
A primeira providência de Vôinho foi correr na cidade, buscar tio Alcides e trazer para casa, e desde então não se menciona nem o nome de minha bisavó na sua frente. Criou os dois com simplicidade, mas em nenhum momento faltou de comer, vestir, estudo, exemplo e amor.
Tanto que na fazenda dele nunca se pôde usar esporas, nunca se sacrificou um boi, tem criação de gatos, de estimação, usam se cercas de madeira, e não arame farpado. Hoje quem cuida de lá, sem cobrar nada, é um secretário municipal de uma cidade vizinha, que ele já ajudou muito antigamente. Amizades de antigamente.
Eu lembro na casa de Conquista, há dez, vinte anos, dele cortando cana para mim e para meus primos, já com oitenta, oitenta e tantos anos. Dava cada pulo para pegar galinhas no quintal que muito homem de vinte anos não pegava. Até cinco anos atrás, morava só, dirigia um Uno vermelho, e comia feijão com banha todo dia.
A doença apertou e agora ele tem enfermeiras acompanhando, uma cama médica, cadeira de rodas e precisa de auxílio para as coisas mais essenciais. Aliás, graças à sua economia, hoje ele pode ter isso tudo.
Há quem considere a sua lucidez ruim, pois ele se sente entristecido pela sua situação. Eu acho que quem perde a lucidez, de certa forma, fica meio morto.
Se eu tivesse talento para isso, a história da família de Conquista dava um livro. Ia ficar mais intrincado que Cem Anos de Solidão.
Mas no livro, como cá, são ciclos, e o da vida, infelizmente, é o mais implacável.

[]´s

quarta-feira, agosto 10, 2005

Minha primeira vez...


Dona Margareth, sim, dona, era assim que se chamavam as professoras à época em que eu estudava o primário, bem antes de alguém, e sabe-se lá quem, tê-las rotulado de tias extra-oficiais. Devia eu estar lá pela casa dos... Nem lembro em que casa dos anos andava eu. Certo é que fiz meu primário no tempo normal, pois só mais tarde é que desandei, ou melhor, empurrei os estudos com a barriga e sai dos trilhos do tempo certo. E vejam vocês que anos depois fui descobrir Pessoa dizendo “ler é nada, estudar é maçada...”; ou seria o contrario? Delírios poéticos aos poetas cabem. Lembrar a idade parece bobagem, principalmente se eu disser lembrar-me de um cheiro daquele tempo, pequena mostra de que a memória tem o dom de nos tripudiar, e faz uso deste quando bem entende, e a nós cabe uma porção de subterfúgios para fugir da pecha de mentirosos. Idades e mentiras, meninas de mãos dadas a passear pelas ruelas da mente humana. Mas, era do cheiro que ia falar, e relembrar desse aqui nesta linha é senti-lo a invadir-me as narinas outra vez. Posso até rever os trabalhos depois de prontos secando ao sol, e nossas toalhas penduradas num pequeno varal, devidamente identificadas com nome e série. Falo dessa tinta guache, é este o nome. Não sei se esse produto carrega o desrespeito de ter outro nome em outra parte do país, posto que aqui, somos dados a batizar nomes mil a uma coisa única, artifício, que, em minha opinião, só deveria se encaixar às línguas diferentes, como natural é. Portanto, como vivemos num Brasil cheio de Brasis outros dentro de si, com seus dialetos vários, há que se aceitar essas diferenças da língua. Trata-se de uma tinta de uso escolar para trabalhos manuais, hidrossolúvel e portanto, não prejudicial às crianças. Quem conhece bem o sabe; seu cheiro é forte, mas a mim era agradável, tanto que alguma ferramenta no meu cérebro o guardou e sempre que mostra o traz ao lado de boas lembranças. Mas a minha idade à época, essa não lembro.

Dona Margareth, essa tinha um ar sisudo, uma seriedade natural ao cargo que exercia, o de diretora de uma sucursal do inferno, pois capetas, sim, é o que éramos. No horário de aula, e bem poderia aqui meter uma analogia além do homônimo, em épocas distintas, claro; e chamar a nossa de Dama-de-Ferro. Fato é que ainda não era a primeira-ministra lá tão famosa; e talvez ainda não fosse detentora do tal cargo, assim como o nosso saber mal atravessava a rua, quem dera o Atlântico. Mas nossa professora era assim, cara-dura, pelo menos em classe, no horário da aula. De beleza também não era assim provida, mas fora dali era simpática, e foram inúmeras as vezes em que a ajudei carregando seus livros, posto que sua casa era eqüidistante entre a escola e a minha. Ali ela sorria, brincava, era normal, como se deixasse a outra no trabalho, aquela que na ocasião propícia a uma gargalhada nos brindava com um quebra-lábios à Monalisa. E foi com um desses sorrisos que ela nos deu um aviso na última semana de aula do primeiro semestre, o que bem poderia ter sido um palavrão, por efeito e causa tão idênticos: Leitura de férias! Espanto. Protesto. Murmurinho. E a Monalisa ali, cruzados braços à espera da calma ficou.

Entrei na livraria emburrado, e logo fugi do sorriso interesseiro do balconista que sempre me vendia figurinhas diversas de álbuns idens. Segui a prateleira da direita passando pelo jornal do dia, a revista semanal, a de mulher pelada, e lá, bem no fundo, renegada à importância que deveria ter para o dono da loja, e até então para mim; estava a prateleira dos livros não-didáticos. Ali, frente a frente, livros e eu. Passeei com olhos descontrolados entre títulos vãos, olhos que se quedariam de bom grado diante de uma única revista de mulher nua por férias inteiras. Já precedendo uma urticária, saquei mão de um não muito grosso, de capa estranha e título fantasioso: A Volta ao Mundo em 80 Dias. Um Julio Verne. Ficção científica para um iniciante, não creio ter feito boa escolha. Acariciei o exemplar, pensativo. Um mês de férias, tempo antes dedicado ao ócio, à bicicleta, à rua, às peladas (babas, em Salvador), agora deveria dividi-lo com as páginas de Verne. Paguei. Levei. Tarefa árdua aquela de ler nas férias, principalmente pela obrigação de prestar contas na volta, afinal, a Monalisa exigira um resumo da obra lida. A responsabilidade estava atrapalhando meu lazer. Comecei a leitura, mas escolhi um péssimo local, rente a janela. Um olho na missa, outro no padre. Os amigos sem-livro-pra-ler-nas-férias pedalavam rua acima, e o “culto” encarando aquela chatice a bordo de um balão. Alternei livro e férias com certa disciplina na primeira semana, e parti logo para a leitura dinâmica. Em seguida fui para o recurso “embromation”. Rabisquei um resumo viajado e entreguei na volta para uma Monalisa falsificada, talvez pelo sorriso mais amplo ao nos rever; já outro não lhe cabia que não o quebra-lábios àquela ocasião, a de ter os diabinhos de volta.

Depois da primeira vez, e do trauma Verne, demorei muitos anos para voltar a abrir um livro com intuito de distração. Quanta vida perdida. Até que um dia me caiu no colo um exemplar de O Germinal, de Zola, e depois outras pérolas como Os Miseráveis, de Victor Hugo; Crime e Castigo, de Dostoievski; Dom Casmurro, de Machado; O Retrato de Dorian Gray, de Wilde, e tantos outros. Atualmente, quando me vejo prostituído, entregue às orgias literárias, lembro-me desse episódio distante, e faço minha vez de Monalisa. Livros vieram, vêm e vão, e nessa viagem literária não mais me deparei com a “verossimilhança científica” daquele escritor-visionário francês que cantou algumas pedras tecnológicas como televisão e o rádio. Preciso reencontrá-lo o mais breve, e quem sabe, a bordo de um balão, para assim concretizar com ele a minha primeira vez.

Alguém tem um Julio Verne aí?

Luz e Paz!





terça-feira, agosto 09, 2005

Coisa Bonita!


"Já no passado os mestres da arte diante da formosura
Não dispensavam o charme de uma gordinha em sua pintura
Gosto de me encostar nesse seu decote quando te abraço
De ter onde pegar nessa maciez enquanto te amasso
Eu não sou massagista e não entendo nada de estética
Mas a nossa ginástica é mais gostosa e menos atlética
Coisa bonita, coisa gostosa,
Quem foi que disse que tem que ser magra pra ser formosa? "
.............
Não sei quanto Eva pesava, nem se ela aceitou a maçã porque estava de dieta, sei apenas que era mulher e certamente concordaria comigo: ô musiquinha brega! Mas coisa boa é saber que a largura da nossa cintura não esconde a formosura!

Dia desses, ao visitar virtualmente um amigo, li uma referência feita por ele a uma amiga que havia falecido. Fiquei chocada! A princípio, porque a morte deixa sempre como troco a ausência sofrida e depois, por reconhecer como vítima a menina que eu facilmente via em suas fotos, com sorriso e formas fartos, além de uma cabeleira longa e loura... nós, morenas, sabemos a cor que primeiro reluz no meio da multidão...

Redução de estômago mal sucedida... Fiquei sabendo logo depois. Como disfarçam a realidade dos sentimentos, as fotos, pensei! Por certo, lamentaria o Roberto, como eu...

Aí, alguém credita ao destino, ou a hora que estava por ser... Alguns enumeram casos vitoriosos, outros somam mais fracassos... e se ainda um lembrar, culpa o Narciso.

Me vêm agora os almoços com o pessoal do trabalho, geralmente em restaurante à kilo, é um convite às tentações dos pratos e aos comentários sádicos da mulherada rendida a exaltação do corpo. Tem sempre aquela que come feito pinto, tem barriga sarada e fica o tempo todo falando que está comendo muito, que tem que diminuir a alface... Ou aquelas que pra cada porção tem uma dieta perfeita!... Pelamordedeus! Nunca diminuí as minhas colheradas ou desisti da lasanha por causa disso, mas dando à César o que lhe cabe, na saída as proporções por baixo das blusas são bem diferentes!

Não sou adepta do "Bom é o que balança"... Mais por questões de saúde do que estéticas. É ruim conviver com cansaço ofegante, sobras por cima da roupa e depressões diante do espelho... A beleza está mais no que sai da boca do que no batom que a pinta.

É verdade que nem sempre a relação gordo e magro resulta em graça e me traio por muitas vezes com minhas inseguranças... Descobri que sempre que me imagino alcançando sucesso no amor e no trabalho estou magra. Ou nas ruas do meu inconsciente não existe o carrasco medidor de peso ou estou por demais contaminada pelo vírus da vaidade.

Outro dia, uma colega depois de se intitular a rainha dos cremes (um para o peito, outro para a parte de fora das pernas, outra para a de dentro, para os braços, para a barriga, para a bunda... ufa!) me fez pensar sobre a solidão que eu impunha ao meu único hidratante... é, nem tão contaminada assim...

segunda-feira, agosto 08, 2005

Passatempo

Era uma noite estrelada... A quarta e última de carnaval... Sentei em meu camarim... As cores do arco-íris à minha disposição... Com as pontas dos dedos comecei a esconder a lágrima que derramava por ti... Formei minha máscara... Máscara negra... Com essas tintas poderia ter sido quem eu quisesse... Mas resolvi ser ele... O palhaço... Aquele que ri de si mesmo... Que não abre espaço para uma felicidade verdadeira... Agora sim eu poderia chorar que aqueles borrões de tinta ao redor de minha boca fariam com que parecesse um sorriso.

Ah... O baile de carnaval... Eu estava lá... Olhando para o horizonte... O som da banda ecoando pelo pátio... Sozinho... A lágrima em meu rosto... A procura incessante pela minha idealização... A minha realização... Em vão na solidão procurei por ti... Os repiques de amores inacabados me fizeram ver o que eu não procurava... Ninguém poderia me entender naquele momento... O brilho em meu olhar mudou... As minhas mãos tremeram... Os repiques viraram tormento... Deixando marcas profundas... Incicatrizáveis... E lá estava ela... A beleza mais pura e dócil... Nos braços de um outro amor... De um desejo... De Arlequim... Aquele que um dia ouvira sussurrar meu amor por ela.

Oh bela Colombina... Que me perdeu no meio de milhões de palhaços... Eu estava lá... No meio daquela multidão... Roupas coloridas... Frouxas... Cheias de longos babados... Sorrindo por fora... Tentando manter a aparência de uma pessoa normal e feliz... Sofrendo por dentro... Frustrado... Decepcionado... Magoado.

Eu tentei preveni-la e você não me escutou... E assim me transformei no Pierrot... Em solidão... Trocado por apenas mais um desejo... Apesar de terem dito que Pierrot no carnaval vira anjo... Fantasia de papel... A única solução que veio a minha cabeça foi ausentar-me... Esconder meu sofrimento... Mentir mais e fugir... Só assim o tempo pode passar... Forçando-me a sobreviver... Porque enfrentar isso tudo me dava medo... Assim preferi ser covarde e fugir... Fugir do que eu não conhecia... Fugir... Porque não podia ter armas contra o desconhecido... Fugir... Porque o vento levou meu tamborim quando a madrugada caiu no céu!

domingo, agosto 07, 2005

Coração Vagabundo

Eu tenho um coração todo metido a valentão. Coração inteligente só bate quando convém. Não fica todo serelepe por qualquer coisa. Já o meu... Todo alegrinho, fica batendo a toa, como uma mulher de vida fácil do sertão quando chega “doutor” na cidade.

Coração inteligente escolhe bem. E não fica batendo quando o peito fica apertado e sufocado. Esse meu valentão aqui não quer nem saber de dor. Gosta de bater, mesmo quando o peito fica apertado e doendo. E assim passam os dias. Eu me escondendo do mundo e ele, muito do gaiato, bate feito a bateria da Portela.

E cantando dor de cotovelo eu vou, um dia atrás do outro, procurando o caminho da felicidade. Mas em meu peito seguem marchas de carnaval e frevos. Muitos frevos. E não importa o tamanho do espinho ou o cheiro da rosa. O importante para ele é bater.

Não posso reclamar do teimosão aqui. Eu sei que é preciso seguir em frente, mesmo quando a esteira rolante segue na contramão. Acho que esse é o segredo: estar sempre na contramão!

Se eu fosse uma estrada, seria uma dessas do nordeste bem esburacadas. Mas meu coração seria como a estrada que leva até a lua. E eu seria a água, enquanto ele é fogo. Ele é o sol no inverso siberiano. Já eu sou a chuva do deserto. Não era para ser assim, mas agora é tarde.

É chato sofrer a dor da solidão. Mas acho que pior ainda é ter que ler textos sobre a dor dos outros. Acho que eu entrei na fila mais de uma vez, na hora de pegar minha quota de sofrimento. Porque de todos os que conheço, eu sou o que dou menos certo quando o assunto é felicidade.

Mas tudo bem. Os amores são como primaveras. Mesmo que você perca uma, a vida lhe trará outra (a não ser que você não sobreviva ao inverno da solidão). Tenho sido um sobrevivente dos longos invernos que ocupam a minha vida, esperando por pelo menos uma primaverinha bem ordinária para quem sabe, eu seguir no mesmo ritmo desse meu coração vagabundo.

sábado, agosto 06, 2005

Ela que não acredita mais no amor

Um simples gesto – um suave deslizar de mão por suas costas – faz todos os pêlos do seu corpo se arrepiarem. Por esse gesto ela espera dias, semanas até. São as migalhas de uma relação – tudo a que ela têm direito. E tem sido assim há anos.

Era uma noite de quinta-feira quando eles se encontraram. Seu dia tinha sido terrível até então. Acordou atrasada, pegou engarrafamento até o escritório. Brigou com o chefe. Quebrou uma unha. Saiu da dieta pra tentar relaxar e depois se sentiu culpada por isso. As sandálias novas e caríssimas faziam calos horríveis. Recebeu a fatura do cartão de crédito. A menstruação chegou antes da hora trazendo consigo as famigeradas cólicas. Ao fim do dia, decidiu se dar um presente. Decidiu que merecia um cineminha com pipoca e um chopp na saída.

E assim foi. Dirigiu até o shopping. Parou diante dos cartazes no cinema.

Escolhido o filme (suspense policial, pra variar), comprados o ingresso e a pipoca, caminhou até a porta da sala 6. Uma pequena fila, a sala ainda não fora aberta. A sua frente, um jovem casal de namorados beijava-se apaixonadamente, mantendo as mãos entrelaçadas. Ah! A paixão dos jovens. A paixão daqueles que ainda não descobriram a traição vil e impiedosa, o desprezo, a indiferença, pensou enquanto sorvia um gole do refrigerante light pra disfarçar a inveja que sentia.


Do alto dos seus muitos 26 anos, não acreditava mais no amor, mas ainda esperava por ele.


Um pouco mais a sua frente, um belo homem com cabeleira levemente grisalha a observava com olhos vorazes. Olhos de predador ao avistar uma presa em potencial. Observava cada detalhe do seu corpo. As pernas torneadas, fortes e roliças, como ele gosta. Pés delicados sobre saltos de 5 cm, apesar de não precisar deles. Alta e elegante, ela tinha a postura de uma bailarina ao entrar no palco. Traços fortes, mas ao mesmo tempo suaves. Seu rosto parecia saído de uma tela antiga. Os olhos poderiam guiá-lo à perdição... Mas ela ainda não o vira.

As portas do cinema se abrem e eles caminham em direção a seus lugares. Ele retarda o passo, fazendo-a andar a sua frente. Observa atentamente o suave balançar de seus quadris e o movimentos de suas belas pernas a se equilibrarem sobre os saltos. A palpitação e a respiração ofegante já denunciavam suas intenções. Ela acomoda-se em uma poltrona e cruza as pernas, revelando uma curva nas coxas ainda desconhecidas. Foi fatal. A última gota d’água a transbordar seu corpo cheio de desejo.

Senta-se, deixando uma poltrona vazia ente eles. Daquela posição, a visão que ele tinha era ainda mais surpreendente. Através da blusa fina podia claramente vislumbrar o sutiã rendado e as curvas e contornos de seus belos seios. Ainda bem que não apagaram as luzes, pensou.

Estudava-a sutilmente, tentando descobrir qual seria a melhor estratégia. Puxou do bolso os chicletes de menta sem açúcar que sempre leva consigo. Respirou fundo, mordeu um chiclete e decidiu agir. Ofereceu-lhe um. Educadamente ela recusa. Ele insiste, ela aceita. Pergunta se ela sabe algo sobre o filme, se já tinha lido alguma crítica a respeito. Não, não li nada a respeito, responde. E abre os lábios em um sorriso. Era tudo de que ele precisava. Ousou-se sentar ao seu lado. Ela gostou de ter a atenção dele. Há tempos não era paquerada, principalmente por alguém tão charmoso.

As luzes se apagam. O filme está para começar. Levemente o braço forte dele toca o seu. Sente seu corpo estremecer. É a tal da química de que todos falam mas ninguém explica, pensou. O seu perfume invade as narinas do macho caçador e seu instinto desperta ainda mais forte. Posiciona o braço por trás do corpo da fêmea vistosa, segura-lhe a nuca e a traz pra junto dele. Invade-lhe a boca com seu desejo latente e ela se entrega aos seus apelos. Cada vez mais os corpos se juntam, confundem-se num só. Mas o cinema está cheio e eles precisam se conter.

10 minutos de filme. Deixam o cinema, examinam o saguão. Vazio, todos os filmes já começaram. Seguem até o banheiro. Vamos para o feminino, diz ela, lá os boxes são mais amplos. E lá se entregam a esse desejo inesperado para uma noite de quinta-feira. São dois animais se rendendo aos seus apelos mais primitivos. Lá, se beijam e se amam como se fosse a última vez, com a avidez de quem implora pelos últimos instantes de suas vidas.

E assim foi por uma semana inteira. Na casa dela, na cama, no sofá, na mesa, no chão. No motel, na praia, no carro. Ligações no meio da tarde: Quero te ver. Preciso te ver. Quero fazer amor com você.

Na sexta-feira seguinte, ao se despedirem depois de um sexo maravilhoso, ele diz “Minha esposa chega amanhã com as crianças das férias. Tudo vai ser mais difícil agora.”

Desorientada, pega seu carro e dirige até sua casa. Entra. Serve-se de um bom copo de vinho tinto e se entrega ao sofá convidativo, onde se amaram na noite passada. Não sabe o que fazer. Não consegue mais viver sem ele. Por toda sua casa, o cheiro dele está impregnado. O cheiro do seu sexo, do seu gozo. E ela se pergunta como isso pode acontecer.

Por 3 dias ela não atende o telefone. Não vai ao trabalho na segunda. Sai para uma volta na praia no fim de tarde. Precisa respirar, pensar, ver o mar. Está decidida a não vê-lo nunca mais. Como irá resistir não sabe. Mas sabe que não pode estar mais com ele. Ao voltar pra casa, ele a espera na porta com os mesmos olhares vorazes da primeira vez em que se viram.

Ele se aproxima, ela se afasta. Ele insiste, ela fraqueja. Segura sua mão, ela se entrega um pouco mais. Beija-lhe a boca e ela já não resiste mais. Já está novamente em seus braços. Já estão novamente no sofá se amando como dois animais que são.

E lá se vão 4 anos. 4 anos sem promessas não cumpridas. Sem cobranças impertinentes. 4 anos de telefonemas no meio da tarde. Quero te ver. Preciso te ver. Quero fazer amor com você. Hoje ela sabe o que isso significa. Consegui escapar. Temos 2 horas. Preciso te comer.

4 anos de migalhas, meias-verdades, entrega pela metade. Muito desejo, muito tesão, muito prazer, muitas loucuras.

Do alto dos seus muitos 30 anos, não acredita mais no amor, mas ainda espera por ele.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Vitória da Conquista.














Férias em Conquista - Praça Tancredo Neves.

Neste momento, o termômetro na placa da Coca-Cola marca doze graus. Uma brisa suave, fina, contínua, cortante, faz com que eu evite ao máximo tirar as mãos do bolso do casaco.
De dia faziam dezessete graus e chovia fino, e depois do almoço fomos fazer umas compras no centro.
Sempre que ando por aqui me sinto em outra sincronia. Tudo se move de uma forma diferente. Os carros andam devagar. O equilíbrio das pessoas com as mãos nos bolsos é mais sóbrio, e elas ocupam menos espaço. Os passeios são largos e as ruas estreitas, os pedintes educados, o sol, tímido. As mulheres têm uma beleza elegante, tradicional, resolvida, como se retiradas de quadros de mil anos. Os tons de cores das construções são simples e discretos.
E aquele mundaréu de gente na rua, indo, vindo, boa tarde, freguês – quer dar uma olhada na promoção de inverno? Ê, moço! Você por aqui? Chegou que dia? Passa lá em casa para visitar!
Eu ando devagar acompanhando o passo da minha avó. Ela já não vê tão bem, desvia um pouco a rota entre dois pontos, e eu tomo cuidado para não esbarrar. Algumas vezes, um pequeno esbarrão, opaa! Segue um gesto de aparar, até hoje sempre desnecessário, ainda bem. Desculpe o que, filho? Sou eu que tô barbeirando!
De minuto em minuto, um conhecido, fulana, tudo bem? Lembra de Dido? É meu neto, filho de Luciano. Ô, Maria, mas é a cara de Luciano mesmo. Olha, eu te vi desse tamanho assim... Como é que vai beltrana?
Fígado, galinha, feijão com farinha, mandioca, batata doce, arroz, macarrão, doce de leite e suco de laranja. Cada pessoa com o seu lugar certo na mesa da sala de jantar, desde que eu me lembro, mais de vinte anos. Filho! Trouxe um guaraná para você, que você não pode suco de laranja, não é? Come mais um pouquinho, para acabar a galinha. Quer mais um pouquinho de arroz?
O avô Chefe aproveita o noticiário, olha aí no que é que deu! Tudo uma descaração, esse povo aí. Dirceu, Genoíno, eu não falei? No tempo de Antônio Carlos não tinha essas coisas de mensalão lá! O povo aqui penando pra ganhar qualquer dinheirinho e o PT lá roubando milhões! Milhões! Não deixa o carro lá fora que roubam quinze carros por dia em Conquista, sabia? Meu carro é na garagem, coberto por um cobertor!
Tem um cobertor desde que eu me lembro. Roda quarenta quilômetros em um ano.
No quarto de Vôinho ele está deitado dormiscando, como é que vai no trabalho, lá? Tá trabalhando perto de casa agora, né? Essa chuva que ta dando é boa, pra terra! Deus que manda para a gente, chegando até agosto. Aqui nunca chove desse jeito que choveu em julho.
Noventa e seis anos e sabe de tudo.
De novo pro quarto, dois edredons, controle remoto e meia hora de televisão antes de viajar. (Pro mundo dos sonhos, como fala dona Maria.) O friozinho imobiliza, a barriga cheia, cada parte do meu corpo embalada por uma tranqüilidade que eu só encontro aqui, e o sono vem logo.
[]´s

quarta-feira, agosto 03, 2005

Fantasia de papel

A charanga ainda ecoa sobre o batuque secular do samba se espremendo entre marchas-rancho... Chá-chá-chás e boleros para chegar à massa... Mas a celebração da alta noite aos poucos vai cedendo ao cansaço físico e a festa vai esmorecendo.

Estamos entrando na quarta e última fase de qualquer boa noite de carnaval...Aquela enunciada pelas emblemáticas Bandeira Branca e Máscara Negra.

O fim do baile... O nascer do dia... As pessoas acordando ainda meio bêbadas... Entre fantasias rasgadas... Garrafas derrubadas pelo chão... Confete e serpentina desbotados pela mistura indecifrável de líquidos espalhados pelo chão.

Vários solitários que atravessaram a noite inteira entre flertes e sorrisos e acabaram sem par como vieram... Mas agora eles estão amarrotados... Suados... Usados... Borrados... O final de um baile de carnaval sempre vem mostrar para cada um de nós quem realmente somos... A fantasia cai tão pesada quanto a triste realidade.



Pintava-se de palhaço para fazer os outros rirem... Enquanto... Por dentro... Estava a chorar.

terça-feira, agosto 02, 2005

Dia de Mudança...

Meus quadros empoeirados...
Talvez esse Drummond enterrado na cesta, há muito sem o toque dos meus olhos...
Ou essas fotos... Vestígios dos meus sorrisos, lembranças mortas...
Alguns papéis de balas embaixo da cama... só a mim enganei com esta dieta falsa!
O que descobriria um desbravador ao entrar neste quarto morno? Sentiria minha falta?! Mais certo não me ver sob os lençóis... Não costumo fazer barulho... Não costumo deixar à vista a sombra da minha existência.
Meus textos?! Relatos da minha vida insossa... A quem interessaria, se nem a mim, desprende atenção?!
Teria um vibrador, escondido na gaveta, a sua descoberta mais alardeada do que minhas vitórias nestes concursos de 1.000 para 1! Minha gaveta nada mais é do que esconderijo de calcinhas rendadas... Sem nada que possa aquecê-las.
Ou todos esses cremes caros e cheirosos, na função de dura armadura contra o tempo, contra a gravidade, sem armas para o despencar do meu coração?
O que descobriria?
Que me rendo a esse consumismo ilusório e sobrecarrego de tecidos variados este guarda-roupa? Revelariam essas etiquetas as festas que deixei de ir? Talvez esses sapatos... Barros do meu caminho... Trilhas por onde passo...
Aaaah, Serei donzela por ainda habitar minha cama estes ursos? Ou puta, por deixar à mostra as luxúrias destes budas?

Pilhas de projetos, de sonhos... Estão em mim... Como se dar conta, alguém que não ousar perguntar? Já que não ouso, dar-lhes voz!
Nunca rasguei estes exames médicos... Quem sabe, caiba na fofoca alheia... Negativo... Registra o resultado da minha única noite insana, mas não mostra o meu alívio pela ausência desta outra vida sem sobrenome.
As músicas destes CDs que acompanharam meus choros, minhas viagens à felicidade...
As cartas de um amor fugaz? O cheiro que deixou aqui?

Enquanto não sei o que descobriria, este desbravador, lacro as caixas, o caminhão de mudanças não tardará a chegar...

...

Onde vou colocar estes quadros? Quanto pagariam pelo “rosto sem nome” da artista Carla Alexandra? Quem dá mais?! Quem dá mais?! Rsrsrsrs...

Vou precisar de prateleiras... Meus livros estão virando um amontoado de poeira nessa cesta... Afff, parece um cemitério de poetas!

Casa nova, dietas novas... Doces para o campo de concentração!

Huuummm... Vou colocar essas fotos em um porta-retrato... Essas outras, caixa 2! Escondidinhas!

Os ursos... – Maria, leva esses ursos pra Paulinha, tá bom?! Só deixa o que meu avô me deu!!!

Preciso emprestar Os Budas ditosos pra Márcia... a cara dela!

Nossa, esses exames ainda estão aqui? Não basta o susto não?! Aprendi! Aprendi! Raaaasg! Raaaasssg!

Loreenna, Vercilo, Dja... Vou levar todos esses!

Meu Deus, Pra quê tanto creme, esse amontoado de roupas que ainda nem vesti?! Eita se esses sapatos falassem os lugares que já passaram! Carla, toma juízo, peste!

Toda carta de amor é ridícula, né?! Lixo!!!

Será que tem muitos gatos por lá?

Perto do trabalho... ares novos...

- Já ta tudo arrumaaaadooo!!! Pode mandar o pessoal da mudança subir!