quarta-feira, agosto 24, 2005

Nascido em...

...dois de fevereiro de mil novecentos e sessenta e nove, às vinte horas, quando, segundo um desses sites especializados na posição dos astros, a lua estava na casa de virgem, e o sol sabe-se lá onde; sou aquariano. Minha cidade natal é a porta de entrada da zona da mata sul de Pernambuco, berço da monocultura da cana-de-açúcar, rodeada de engenhos e usinas, e por essa vizinhança ficou conhecida como a Capital do Açúcar. Lembro-me bem dos apitos da usina 13 de Maio, que ficava pertinho da minha casa, nas horas mais importantes do dia. O das sete da manhã lembrava a escola, o de meio dia e meia o almoço. Porém o mais significativo era o da meia noite, em caráter excepcional, no último dia do ano, sendo este seguido de um blecaute, o que dava mais emoção à festa de reveillon. Tempos depois, morando na capital, senti falta do apito e da escuridão do interior.

Palmares é cortada por um rio que nasce lá pelas bandas do agreste, e dizem os antigos que o mesmo já foi potável num tempo longínquo. Minha relação com o dito sempre foi amistosa, posto que na minha época de menino ele de potável não tinha nada. Algumas vezes precisei atravessá-lo para visitar um amigo que morava num sítio na outra margem, por ser a outra opção uma caminhada de uma hora e meia fazendo uso da ponte. Esse atalho era uma jangada arcaica presa a um cabo de aço aéreo para vencer a correnteza bravia nos cinquenta metros da travessia, sem falar da ojeriza que me causavam o toque da água nos pés e o mau cheiro natural de lixo que me invadia as narinas. Por esse rio a cidade ganhou o título de Flor do Una. Vê-se bem que títulos não lhe faltaram no decorrer dos anos, e este outro, o de Terra dos Poetas, vem do fato de ter sido lá que nasceram Ascenso Ferreira e Hermilo Borba Filho, sendo o primeiro de maior renome, amigo de Manuel Bandeira, e partícipe da primeira geração do Modernismo.

É de lá também que tenho lembrança de dois exemplos distintos de políticos, dois prefeitos de estilos e propósitos diferentes. O primeiro foi inesquecível pela “honra” de ter comandado o executivo local em pleno centenário de emancipação política. Armou uma semana de comemorações de toda sorte, indo de inaugurações, missas, discursos à profanações. Por sua “culpa”, o ano de 1979 entrou para a história local, não menos que o seu pronunciamento ao final dos festejos, quando se desculpou pela “humilde” festa, e prometeu no próximo centenário fazer algo à altura da importancia da cidade. O segundo bem poderia se chamar de trabalho. Um homem de visão, fazedor de obras, e era mais que natural vê-lo em suas botas cano longo, seu traje tradicional de mescla azul, seu chapéu de Panamá e os indefectíveis suspensórios, enfiado na lama junto com as máquinas e seus trabalhadores. Hoje, minha cidade está aos cacos, sobrevivendo como curral de políticos sem escrúpulos, coronéis modernos que pagam dez tostões por um voto. As usinas viraram sucata, o rio virou emissário da poluição rumo ao mar, e alguns a chamam de cidade do “já teve”.

À minha época havia dois cinemas, um bom campo de futebol, um campo de aviação, belas praças, e sossego. Atualmente, no campo das artes, por assim dizer, temos um cantador cuja fama não sei até onde se estende, mas fato é que este iniciou-se na cantoria imitando o hoje indefeso Luiz Gonzaga, e a voz até que lembra. Dizem a boca pequena que Santana renega as origens, mas seu forró pé de serra segue firme. Outro cidadão palmarense, de fama no âmbito domestico, atende pelo singelo apelido de Lulica, cantor de última hora e de talento duvidoso. Certa feita tive o prazer inefável de vê-lo encher uma linguiça indigesta num desses festivais de interior entre um show e outro. E foi graças ao advento tecnológico do compact disc que o mesmo gravou seu primeiro cd, que logo tratou de distribuir nas melhores casas do ramo.

Eis que num desses domingos sem propósito, um ladrão saiu para o trabalho na surdina. O gatuno achou de arrombar justo uma loja de discos, e fez a festa, levando cds, dvs, fitas k7 e afins. Imaginem qual não foi o susto do proprietário naquela segunda-feira indigesta ao se deparar com o prejuizo. Chamou a polícia que logo o atendeu e lavrou o famigerado boletim de ocorrência, claro, após a perícia, feita pelo empírico investigador Pereira. Ninguém tocou em nada até sua chegada; prancheta na mão, com seus olhos de lince, e o faro de perdigueiro, Pereira logo deu o veredicto, quando em alto e bom som lascou:

“Já tenho a pista!”

“Sério? Tão rápido?”, indagou o proprietário.

“O larapio é da cidade!”

“Oxe, e como o senhor sabe?”

“Ele não tocou num único cd de Lulica!”

4 comentários:

Diógenes Pacheco disse...

Elementar, meu caro Múcio... :)

[]´s

Vinicius disse...

Infelizmente não tive a chance de conhecer qualquer cidade do interior. Sou nascido e criado em capital e meus parentes do interior estão longe demais para visitas.

Tenho vontade de viver um pouco a coisa do interior, mas ainda me falta oportunidade.

Mas com certeza o melhor de tudo foi o delegado e sua dedução fantástica.

Abraços.

Anônimo disse...

pelo visto, palmares também "já teve" graça. hoje... só sobrou a piada.
:P

Marina disse...

Olha aê sua sobrinha fazendo graça! rsrs... :P

Belo texto... boas memórias... Velha infância... Você é assim Um sonho pra mim E quando eu não te vejo... Ops! Música em ocasião errada! :P

Beijos meus! ;)