terça-feira, agosto 30, 2005

Um gole de traição e café...

Precisava encontrar o leite. Não agüentaria seu estômago por tanto tempo vazio, aquele café negro e forte... Forte como gostaria de ser, pensou. O pó branco logo se assentou no fundo da caneca amarela. Sentiu falta das bolas doces e brancas que boiavam como náufragos nas xícaras da sua infância antiga. Infância que acenava com um lenço colorido do primeiro lado da ponte dos anos, enquanto as lágrimas vermelhas da saudade soluçavam no ponto seguinte. E lá, o tempo contava vinte e nove.
Longe dos pedidos da sua consciência, a garganta rejeitava mais uma vez, a investida do café. Nem o odor fresco daquele caldo quente a seduzia, afrouxando-a. Seu corpo respondia à tristeza do seu coração, como se qualquer manifestação de prazer, atestasse que estaria por sofrer menos a perda do seu amor.
Desistiu, como já se acostumara a fazer e seguiu para a sala ampla daquele apartamento de 2 quartos. O caminho das prestações seria largo, mas nada que afastasse o prazer da sua primeira conquista. Bem adquirido com a promoção justa que recebera. Parecia agora, enquanto tentava se acomodar deitada no sofá estampado de 2 cômodos, que aquele canto no meio dessa cidade já tão sem graça, teria sido o único momento em que a sorte havia apontado para ela. Não mais se construía apartamentos com vastas dimensões. Ela estava em um deles. Sozinha.
O teto bailava, rajado por faróis vindo de carros desconhecidos. E por algumas vezes, ela desejou que aqueles raios fossem cadentes estrelas a coroar seu insistente pedido de voltar no tempo. Não apenas dois dias, quando flagrara amargamente uma mão conhecida, carregada de toques e promessas, sem aliança, envolta de uma cintura loira. Mas 3 anos, no exato instante em que perdoara a primeira traição com um beijo. Evitaria, por certo o noivado 1 mês após e o desperdício de tanta dedicação, sonhos e declarações.
Velava a morte das tentativas, da sua solitária crença de um amor heróico, responsável por atenuar os por quês das relações, das rotinas sem dribles, da inata infidelidade masculina, visto que a feminina não lhe cabia. Enquanto ainda lamentava a sua fraca percepção diante das esfarrapadas desculpas para tantas ausências e atrasos, adormeceu. E sonhou.

.....ooo

As bolas do leite haviam emergido. Apresentavam uma diferente textura. O café não estava talhado com a cor costumeira da mistura do negro com o branco. Tinha um tom rebú, de vermelho ensangüentado. Merecia sorver o doce daquelas bolas longe do sumo escuro. Pegou uma colher. E antes de aproximar da boca, o que os olhos já haviam devorado, sentiu a garganta elastercesse prazerosamente à espera do que logo mais estaria a penetrar-lhe. Nas frações que cabem aos segundos, deu-se por conta que estava prestes a devorar não as crostas formadas pelo leite, mas o pedaço de uma coisa, que identificara como a parte mais sensível do pênis que a havia enganado.
Ainda teve tempo de assustar-se com o restante “dele” que habitava a tábua de carne, ao lado da peixeira que o fatiara. Sentiu-se “arretadamente” em êxtase. Como se o gozo que tanta vezes sentira com aquele ser, tivesse atingido a plenitude com a sua morte.

.....ooo

Os olhos abriram-se, sem direção certa.Tinha a sensação de ser expulsa do próprio sono. Notou que já era dia. Não vinha à memória quantas horas havia dormido ou se algum sonho tinha feito parte daquela entrega ao cansaço. Sabia apenas que sentia fome e que estava revitalizada. Queria voltar ao trabalho. Não mais daria desculpas por sua ausência. Tinha uma estranha sensação de dever cumprido e teve vontade de rir. Cedeu algum tempo ao banho, engoliu um suco de laranja com torradas e já estava alcançando a porta, quando inexplicavelmente lembrou que precisava amolar a peixeira.

4 comentários:

Marina disse...

Adorei!

Patita e sua peixeira!

Às vezes dá vontade de fazer picadinho de certos tipos de canalhas que se dizem homens... :P

Muito bom!
Beijos! :*

Leonardo Caldas disse...

durante a primeira parte fui me deixando levar pelo tom cheio de nostalgia e lentidão do texto... e de repente, hmmmmmmm...
chegou a doer!! :)
está excelentemente escrito, pati... essa forma que você tem de descrever sensações me encanta...

Vinicius disse...

lindo, lindo e lindo. Não sei o que comentar. A beleza do texto fala por si. Eu, zero à esquerda, devo me calar diante de tudo isso, porque os idiotas falam quando devem calar. Estou aprendendo quando devo ou não falar. E agora, diante da beleza, meu silêncio é a melhor homenagem.

Anônimo disse...

That's a great story. Waiting for more. » »