quinta-feira, dezembro 01, 2005

A Cereja.

Ele abriu a porta e apertou a mão do garoto. Barba por fazer, cabelos despenteados, camisa por fora da calça e com as mangas dobradas. Olhou-o de cima a baixo. Ofereceu-lhe um assento, o rapaz se abancou.

- Quer dizer que você quer aprender a escrever contos?
- É. É. Eu sou um grande fã do senhor e - a perna tremia, arrastando a bermuda de surfista do lado da cadeira - e... e gostaria muito de umas dicas, sabe?
- Sei.

Pensou em dizer-lhe que um bom escritor não usa franja. Aliás, bons escritores também não são loiros, não usam camisas estampadas do Radiohead. No fundo, sabia que nada disso era verdade, mas aquele sorriso de brackets azul-bebê lhe causava uma certa náusea.
Sorriu mostrando os dentes amarelados, coçou a cabeça, acendeu um cigarro.

- Sei...

A sala era pequena, com móveis velhos de madeira. Janelas altas e, pelas persianas, os raios de sol diagonais iluminavam a poeira suspensa, misturada com a fumaça do cigarro. Derramavam luz, parcialmente, em uma velha máquina datilográfica, sobre a escrivaninha.
Ao lado da máquina, causou-lhe estranheza uma mala preta.

- E essa mala?
- É meu notebook.
- Se quiser aprender alguma coisa, você vai ter que usar a máquina. Para valorizar mais o que está fazendo.
- Óquei.
- Computador é muito volúvel.
- Tudo bem.

Ria-se por dentro, enquanto pensava se a máquina ainda iria funcionar depois de tantos anos.

...

A semana corria e seus santos continuavam se olhando enviesados. Apesar disso, ele tentava, em certa medida, realizar o proposto. Leu umas coisas escritas previamente pelo rapaz.

- É uma questão de ambientação e personagens, sabe?
- Tô ligado...
- Mais até de personagens. Se eles forem bons, tiverem coerência, profundidade, eles tem vida!
- Vida?
- É. Quando você faz um pesonagem assim, ele escapa de você. No meio do texto você percebe que ele está tomando suas próprias decisões, vivendo sua vida.

O aprendiz olhava como se não estivesse acreditando muito. Ele percebeu. Tomou mais um gole de café, pensando quem era aquele pirralho para duvidar. Seus dentes cerrados mordiam o copo plástico, como se objetivassem a jugular à sua frente. Respirou fundo.

- Olhe bem, garoto. Eu não falo nada por falar. Minhas lições tem um motivo. Não estou aqui perdendo tempo, estou?
- Não, senhor...
- Mas faça. Demore nos personagens. Pense bem quem são eles. Aí você vai criar uma situação e eles vão reagir. Pode começar agora. Só quero saber amanhã de tarde o que você fez.

Saiu da sala, enquanto acendia um cigarro.

...

Leu o texto de uma sentada. Uma crônica de vinte páginas. Circulava, sublinhava e, não obstante o papel datilografado, rasgou as últimas páginas sem nenhuma cerimônia.

- Tem até futuro... mas dê uma olhada nas observações aqui.
- Certo.
- E de onde você tirou o "hodierno"?
- "Hodierno" quer dizer moderno, que...
- Eu sei o que quer dizer "hodierno". Mas colocar um termo rebuscado num texto com o seu linguajar não tem nada a ver.
- Meu linguajar?
- Nada demais. Só não é rebuscado. Fica parecendo tabaroagem.

Disca um número no celular e deixa o rapaz sozinho na sala, enquanto fala baixo na recepção, num tom misterioso.
A secretária, Lúcia, uma loura portentosa, de lábios grossos e olhar sedutor, parece prestar atenção na conversa. Ele acende um cigarro e olha para ela, maroto.

- E aí, Lucinha? Nunca mais te vi me olhando desse jeito.
- Que jeito?
- Esse. Você sabe.
- Não estou te olhando de jeito nenhum. Aliás, desencana de vez. Já tem dois anos que a gente não tem nada.
- Mas pode ter! Que tal um jantarzinho hoje?
- Já tenho compromisso.
- Ah, é? Com quem?
- Com o garoto.

A piada já estava preparada na cabeça para quem quer que fosse, mas não saiu. Ao invés dela, balbuciou o início de um "filho da puta", mas também não o falou. Seus dentes cerraram mordendo o cigarro. O filtro ficou na boca, a parte do fumo quase caiu, mas ele aparou a tempo. Cuspiu o filtro na mão e saiu da sala.

...

O garoto datilografava um novo conto enquanto ele terminava de ler o primeiro. Já acertara, na outra ligação, que seu editor desse uma olhada o trabalho do garoto.

- Muito melhor garoto, mas falta a cereja.
- Cereja?
- É. O gran finalle. Seu texto termina com a mesma toada que começou.
- É ruim, isso?
- Não é ruim, mas não empolga.
- Ah, mas no final o Maurício fica com a Léa!
- É. Eu vi. Mas não é grande coisa.
- Eu achei. Como assim cereja? Me dê um exemplo.
- Achou? Está me contestando? Um exemplo??? Um exemplo!?!

Ele abre a gaveta, tira um revólver e aponta-o na cabeça do garoto, para seu espanto. Está com os dentes cerrados.

- Pra comer a secretária dos outros não precisa!!
- Pera...

Ele puxa o gatilho - click!
Olha pro chão e sorri.

- Eis um exemplo! Isso é uma cereja! Lúcia! Vem ver seu namorado surfista machão aqui! Mijou o carpete todo!

Sai acendendo outro cigarro, dá um tapa na bunda de Lúcia enquanto cruza a porta. Ainda ouve, dentro da sala, a voz envergonhada do garoto.

- Caraaaalho, bróóder...

[]´s

3 comentários:

Marina disse...

Muito bom! Adorei! ;) E Lúcia tinha que ser loura né?! :P Bjus.

Anônimo disse...

Muito legal...que coisa esse escritor invejoso, não?

Vinicius disse...

caralho, broder... Muito bom, muito bom, muito bom.

Muito bom!