segunda-feira, dezembro 05, 2005

A puta e o suicida

"Merda de música chata", eu pensava, enquanto lentamente mexia no dial do som. É tão mais fácil quando não se tem quase uma garrafa e meia de bebida destilada no cérebro. O vento frio, que traz a chuva fina pela fresta da janela do carro, já incomodou mais. Agora é só uma forma de me excitar os sentidos e me fazer perceber que apesar do entorpecimento ainda estou vivo. Pelo menos por enquanto... O pedaço de metal que seguro nas mãos nunca esteve tão pesado. Tenho uma única bala. Como se fosse precisar de mais de uma pro que pretendo... Já perdi as contas do número de vezes que tirei-a e coloquei de volta no tambor. É uma bela arma e, segundo o sujeito sorridente que me vendeu, perfeita para amadores. Bom equilíbrio, cromada, entre várias outras características inigualáveis cuja existência fez questão de me despejar numa torrente desencontrada de adjetivos. Teria um bom futuro como vendedor, não fosse um marginalzinho de terceira.

De onde eu estava, parado em plena orla, conseguia ver pelo retrovisor as luzes da cidade. Um caos multicolorido que ia e vinha ao sabor de nada. À minha frente, o mar escuro e sombrio. Estava calmo agora, espumando um pouco nas marolas, e às vezes me chegava a maresia e seu barulho calmante misturava-se à confusão de sons que vinha do lado oposto. O lado da cidade. Não havia ninguém na praia logo ali. Não com um tempo frio como esse. Acendi o cigarro que já havia enrolado antes, e o cheiro bom e adocicado da marijuana misturou-se ao do mar. Fechei os olhos.

Já tinha tudo preparado. As contas, já devidamente pagas. Afinal, suicida sim... Mau pagador, nunca! Prefiro - com o perdão do trocadilho - morrer. O bilhete fora bem escrito, e as razões estavam todas ali, bem claras. Na verdade claras ao ponto de eu não conseguir imaginar como mais gente, ponderando sobre a validade de meus motivos, não viesse a fazer o mesmo que eu. Terminei semana passada com minha (agora ex) namorada. Um coração partido a menos no mundo... Sei que com a família vai ser diferente... meus pais, Kardecistas daqueles de carteirinha, vão fazer correntes inteiras de orações pela minha alma, e chorarão por um bom tempo. Essa é a parte ruim... gosto tanto deles.

"Ei amor, bora fazer um programinha?"

Só então a percebi ali. Pequena, extremamente magra ("esquelética" talvez a definisse melhor), vestindo as naturais roupas chamativas e curtas que a profissão exigia. Inacreditável... uma puta, surgida do meio do nada, oferecendo-se pra mim na noite que escolho pra me matar! Observei-a com um pouco mais de calma, e notei o sorriso, ao qual ela obviamente pretendia imprimir um ar de sensualidade, mas que, dadas as minhas funestas intenções, a hora da noite, a luz pálida e desfavorável do poste mais próximo, a chuva fina que lhe borrava a maquiagem já naturalmente mal feita e o aspecto geral do corpo (que com o frio que fazia, tremia levemente de forma involuntária, acho) junto a uma aura de desamparo e medo só conseguia me fazer sentir é pena daquela figurinha esquálida e assustada na minha frente.

"Não. E vai embora."
"..."
"Ah, entra aí, vai... Tá frio pra caramba aí fora."

E ela entrou. Sentou-se timidamente no banco do carona, e sem me olhar nos olhos começou a me dizer de forma envergonhada os valores referentes a seus "serviços". Nessa hora não consegui deixar de sorrir ante o inusitado da situação. Eu, que queria dar cabo da própria vida aquela noite, tinha a meu lado no carro uma prostituta que, com visível pouca experiência nos meandros de sua profissão, oferecia-se pra mim. Comentei meio vago que não tinha a menor intenção de fazer um programa com ela, mas que não havia problema caso ela quisesse esperar um pouco até a chuva passar. Pareceu pesar pós e contras por alguns segundos, e dando de ombros recostou-se no banco. Notei que olhava de soslaio a garrafa de vodca que eu ainda não esvaziara. Isso sem falar do cigarro, largado no painel, exalando o odor característico.

"Quer um gole?"
"Bom pra esquentar um pouco, né? Tá fazendo muito frio essa noite!"

Contei três goles dos bem generosos...

"Xô dar um tapinha?"

Passei o baseado.

"Hmm... Qual o teu nome?"

"Kelly Christinne, com dois 'n' e dois 'l'". Baixou os olhos. "Ah, é Cleonilda Maria", admitiu, com a vergonha típica dos que são apanhados com alguma coisa tirada duma loja. Pensei cá comigo que realmente apresentar-se a um de seus clientes ou ser anunciada num dos barzinhos em que era bem possível que ela dançasse com um nome como "Cleonilda Maria" não ajudaria em nada em seu marketing pessoal. Um pouco mais à vontade, Cleonilda Maria viu a arma, e rápida falou.

"Tu é cana, cara? Me prende não, que eu não fiz nada!"
"Não... não sou policial."
"E pra que essa arma?"
"Pretendo me matar."

Ela me olhou com uma expressão curiosa no rosto. Os olhos meio arregalados, com aquela maquiagem toda em volta, e formou um início de sorriso na boca melada de batom. Pôs a arma de volta cuidadosamente.

"Ah, tá. Hoje?"
"É bem provável que já tivesse feito se não fosse tua presença, inclusive."

Ela novamente me lançou um daqueles olhares curiosos, mas não falou nada. Deu mais um de seus bons goles na vodca, e começou a contar de sua vida. Não havia sido puta sempre... veio do interior cheia de sonhos, pensando em conseguir um emprego razoável e conhecer um cara bom e carinhoso, como convém a toda menina sonhadora. As coisas, evidentemente, não haviam dado tão certo quanto ela imaginara... os empregos, ruins... os caras, violentos, pouco tinham dos príncipes com quem sonhara. E a conversa, agradável... Me prendeu. Quando percebi, lá vai o dia amanhecendo em nossa frente. Sol nascendo devagarinho e os reflexos na água ofuscando o olhar de ambos. Ela sorriu, agradeceu a companhia, o bagulho e a bebida. Me beijou no rosto e saiu. Já fora do carro, parou e olhou calmamente o mar uma vez, e se foi. Eu, de minha parte, morria de dor de cabeça... um gosto horrível na boca. Lembrei que ainda tinha uma coisa importante - a última - a fazer. Era simples... pegar a arma... pegar a bala... hmmmm... a bala... cadê a bala?

A puta-Kelly-Christinne-Cleonilda-Maria havia levado a bala consigo... e, lá do jeito dela, salvo minha vida. E naquela hora tive vontade de abraçá-la.

4 comentários:

Marina disse...

Muuuuuito bom, Léo!
Gosto do jeito que vc escreve... todos os seus detalhes... Já disse isso! :P

Adorei o texto!
Bjus ;)

Edson disse...

Léo,

Ótimo texto!Fazia uns dias que não entrava no Expressões Digitais e gostei muito do seu texto. Abração"

Fábio Farias disse...

muito bom :)

Diógenes Pacheco disse...

Da próxima vez convém evitar o eixo Pituba - Costa-Azul... :)

[]´s