segunda-feira, março 27, 2006

Em nome do pai

Estava assistindo tv essa semana e vi num noticiário uma cena que me chamou a atenção. Uma senhora, daquele tipo enrugado, pequeno e de idade indefinível que tem em geral o sertanejo nordestino, maldizia a sêca que assolava a região onde morava. Era uma situação realmente deprimente... A família, enorme, não tinha o que comer. Ela levou a equipe de reportagem à cozinha (ou ao arremedo de cômodo que eles chamavam assim) e mostrou uma panela suja com água e uns caroços de feijão. Era aquilo e o arroz empapado. E velha tinha presa a si uma criança de colo. Menino cabeçudo, subnutrido e já com a cara sofredora, tristonha e faminta que provavelmente levaria vida afora. Toda a casa exalava uma atmosfera pesada, com aquelas pessoas feias e com aspecto de fraqueza e desamparo que os barro batido das paredes só fazia acentuar.

Lá uma hora, close no rosto da velha já numa cena externa, enquanto o reporter pergunta o que que aconteceria dali em diante se continuasse o período seco. Ela, olhos sofridos e chorosos, puro sofrimento e rugas, responde: "Agora tá nas mãos de Deus, meu filho... Foi ele quem quis assim!". Corta pra uma
música de fundo daquelas tocantes, com uma olhadela compungida - provavelmente muito bem estudada - do repórter, e o quadro termina, dando lugar às notícias mais amenas do noticiário.

Comecei então a matutar sobre o deus daquela velhinha. Dela e de mais outros tantos iguais na mesma pobreza e feiura. Baseado no que cada um deles poderia atestar de forma veemente, é um deus justo e cheio de misericórdia; poderoso a ponto de lhes melhorar a vida, de acordo evidentemente com seu próprio merecimento. Pois sim... é também o mesmo deus que os coloca a todos do lado errado da tal da partilha do que lhes cabe do latifúndio, sem possibilidade alguma de "mudança de lado". Aliás, é desalentador perceber quão deslocado esse pessoal está, qualquer que seja o ângulo a partir do qual se proponha a ver o mundo... até geograficamente eles estão no lugar errado! Mesmo porque ao que parece, o mesmo deus que lhes nega o que comer (por provável falta de merecimento), faz ganhar - por merecimento em excesso? - prêmios de loteria às dezenas a uma figura que, guardada a minha reconhecida ignorância no campo da teologia, eu sempre imaginaria num dos últimos lugares de uma hipotética fila de distribuição de bençãos e benesses...

Eu, de minha parte, creio em deuses um pouco mais palpáveis. O deus da disponibilização igualitária do conhecimento, por exemplo. Nos templos dedicados a ele se pediria por uma estrutura educacional mais digna, em que o conhecimento se tratasse mais da formação da consciência de indivíduo e cidadão que da alfabetização capenga e da história/geografia marcadas edatadas com o intuito de formar "massa conduzida". Um outro deus digno de uma boa romaria seria o da verdadeira distribuição de renda. Um daqueles para o qual se pudesse orar para que as quantias destinadas a programas sociais (preferencialmente os não-assistencialistas) não fossem perdendo-se no caminho, indo parar em cuecas de petistas, construtoras de pefelistas ou em lugares ainda mais estranhos...

Um deus que regesse meios de comunicação íntegros e comprometidos com a divulgação da verdade pura e simples também não seria nada mal. É... aquela sem interpretações dúbias de intelectuais representante de elites. A que tem uma análise somente: a correta. Eu mesmo levantaria um altar em honra de um deus assim. E rezaria por menos novelas, programas de auditório dominicais, revistas de fofoca, pagodeiros ou qualquer outra particularidade que caracterize uma sociedade de consumo fácil e hábitos massificados.

É que assim, cercado por tanta proteção divina, eu sei que qualquer pessoa levantaria pela manhã com a saudável sensação de que entende o mundo em que vive... de que sabe o papel que desempenha nele, e entende melhor as regras que o regem. E que não vai ser enganada por nada. E que vai ter a justa oportunidade de construir, com as mesmas chances que qualquer outro, seu lugar debaixo do sol.

Mas é foda... porque no final das contas, com ou sem deus, eu não consigo tirar o rosto daquela velhinha do pensamento. E isto me entristece muito... :(

2 comentários:

Vinicius disse...

Leo,

Infelizmente o homem é quem cria essas velinhas e a feiura da fome. E cria também a ilusão de um deus impiedoso e cruel.

O meu Deus é o amor, porque é como eu consigo entender Deus.

Pois bem, como diz o ditado: O sol nasce pra todos, só os albinos é que não gostam.

mg6es disse...

Renato Russo bem chamou essa máquina de Teatro dos Vampiros"... zoom+olhar+lágrima= tv.

Grande, Léo!

[]´s