quarta-feira, abril 26, 2006

Noventa e um parece ontem...


É, amigo... de frente para a minha janela agora, vejo um derramar de outono fugaz para dentro do quarto, culpa da timidez desse sol que maio nos dá, assim, quando a tarde vai pelo meio. Justo agora, me veio à mente, uma breve reminiscência com você por dentro. É que a vida, desse lado de quem vê, com tantos ais e quês, passa num caminhar incansável, e por capricho, faz com que nos esqueçamos de detalhes valiosos, mas que não se perdem por sempre, posto que gavetas se abrem aleatórias, e de relance, trazem de volta coisas, pessoas, e momentos. Num silêncio que fez aqui, há pouco, a que guarda você em mim abriu-se, e como num espaço sem gravidade, fez flutuar lágrimas e sorrisos, os que um dia dividimos à mesa.

Da choupana onde vivo hoje, aquela que desenhava entre conhaques e poemas de Maiakovski, e da qual você ria a zombar de meus sonhos; daqui, amigo, vejo no breve lago sereno, no espelho que ele forma; flashs de um passado onde você cabia, e era. Vejo o alvoroçar de idéias que saíam de nossas cabeças jovens. As mulheres que tínhamos na facilidade que o pensar permitia. A volta ao mundo que nunca demos, e todos os erros que nossas costas carregaram com alegria. É, amigo... noventa e um parece ontem...

Faz maio esta tarde, mas um maio saudoso. O céu que faz neste fim de tarde é triste, até digo, triste. É que sendo hoje seu aniversário, e noventa e um indo tão longe, caiu em desuso a alegria. Esta virou obsoleta peça de museu. Da raiva já uso mais, porém, sem saber a quem senti-la. E a solidão, esta, aqui dá em qualquer pé. Você bem merece minha raiva, mas, sequer sei como tramitam por aí esses processos. Melhor não. No que acredito é muito pouco, até nem sei se o que penso, escrevo, você pode saber. Que seja, um deus tem de haver, para essa bagunça toda consertar, um dia, não é?

Aqui onde vivo tudo é simples, e belo, não menos. O dia é longo, e cheio de gratas surpresas. Por agora, bem do lado, um rouxinol vadio ensaia acordes em sua maestria nata, cena digna de um haicai quebrado. Acolá, uma lavadeira tardia volta do riacho onde deixou os ecos de seu canto. Quando as cortinas se fecham, e logo abrem para o show do palio de sempre, e as primeiras meninas que brilham vêm me açoitar, cumpro o ritual mesmo, o do chá quente que abranda a brisa glacial que invade as frestas. E a vida de amanhã repete hoje, ao menos na aparência, posto que creio em Heráclito. Maio que vem tirarei a mesma fotografia, eis que, incansável, todo ele acontece. Queria eu essa bravura dos meses, que se repetem sem cansar.

Da mesma forma que você estaria, nós, aqui estamos, nem bons, nem maus. Alimentamos a de sempre pequeneza de quem acredita ser apenas isso, e aqui. E você bem que poderia nos sacar as vendas, e assim nos tornar maiores, já que mortais, mostrou que somos. Também não somos mais tão inocentes, e o tempo que passou nos imprimiu à testa uma ousadia risível. Laurinha casou. Serjão largou a batina. André virou monge. Lucinha faz programas. E Teco, lembra? É... ele não era gay, e agora é pai e tudo. Os dias seguem assim, menores que sua falta. Eu, sozinho, carrego minhas vidas já um pouco curvado, e brigo com os meus pés quando insistem em se arrastar. Aquela barba, a que rapazote se contava os fios, de branca já passou. Os cabelos já iniciaram a fuga imposta pelo tempo, ou, pela genética. E os filhos que não tive cantam nesses galhos que margeiam meu telhado. Fiquei de choro fácil, e medo de escuro. Mas também me rouba um riso, qualquer folha que ao cair, faça um balé outonal. Divido um chalé com meus livros, meus discos, uma solidão benfazeja, e umas alegrias furtivas. Do que sempre quis tenho quase, do que me falta nem sinto, e, assim me faço feliz.

Dizer sobre o bem que lhe quero, tem o valor mesmo de chuva na água. E da vontade de um dia revê-lo, esta, fica na casa do que a minha crença permite. Vou ficar aqui, nesse dia de maio cuja tarde me foi triste, e a noite já desponta, trazendo em si uma chuva leve, coisas de maio por essas bandas. E aqui ficando, vou usar do ar que me resta, para em todo dia, como este, em que a saudade me aperta, e a lembrança me abate, trazer ao papel o meu sentir, no afã de que esteja errado, pois, no que acredito é muito pouco, até nem sei se o que penso, escrevo, você pode saber.

4 comentários:

Vinicius disse...

Misto de nostalgia, tristeza e resignação. As vezes parece que você fala com Deus, as vezes parece que você fala com um conhecido e depois com você mesmo, só que num outro tempo: 1991.

E como eu sei o significado desse ano para você, tentei entender o texto por aí.

Mas como sempre, o texto está lindo!

Leonardo Caldas disse...

emblemático, o velho múcio... a tristeza morna que o texto evoca... a contemplação inerte do maiakovsky... tudo neste remete a tardes chuvosas em que se olha de soslaio pelo vidro da janela, e se pensa que o mundo não vale à pena.

vamos abrir gavetas, pois, e ver o que tiramos de lá...

Anônimo disse...

Bj no coração. Divino Múcio!

Anônimo disse...

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