segunda-feira, dezembro 11, 2006

Dois é R$ 0,50, quatro é R$ 1,00 e seis é um valee!!

Duas da tarde numa Salvador em que o verão já se faz sentir com toda a sua quentura. Sol a pino. O cenário? Uma parada de ônibus de qualquer de um dos bairros populares da cidade...

Com a proximidade do natal, é impressionante a profusão de bugigangas dispostas caoticamente nas barracas de ambulantes. Pra deleite da gurizada e das mães, é um tal de camelô balançando bonecos dentro de bolas de neve, CDs genéricos de canções natalinas da Simone e luminárias neón de todas as cores que nem se vê mais tanto aqueles relógios despertadores com ruído irritante que em geral são postos todos pra tocar a cada 10 minutos. O in nesta época do ano são 'coisas natalinas' (entenda-se por 'coisa' o que quer que seja plástico, tenha muitas cores, seja barato, barulhento, venha da China e - se tiver vozes pré-gravadas - fale Inglês).

E eis que numa barraquinha improvisada, um ambulante pusera (porcamente suspensa por umas tábuas finas e ligada ao gato puxado duma loja próxima) uma tv de 20 polegadas donde saía a imagem distorcida de um DVD genérico do Edson Gomes (distorção devida sabe-se lá se ao fato de ser genérico o DVD ou a tv). Obviamente o som posto bastante alto e abafado tinha o duvidoso objetivo de atrair compradores em potencial. Mas não é que estava funcionando? Dois ou três rapazes, que bebiam distraidamente umas latinhas de cerveja em pé mesmo enquanto esperavam a condução já rondavam por ali, nitidamente interessados, e começavam de forma tímida a ensaiar alguns passos de reggae, ostentando suas clássicas bermudas de nylon caídas muito abaixo da linha da cintura (e evidentemente abaixo também das próprias cuecas) e óculos escuros de plástico, ao tempo em que já apareciam os comentários de praxe aqui e ali: "Porra, maluco! Isso aí sim é que é show, vú!". O camelô, atento à movimentação, procurava atrair a atenção dos passantes para o resto de seu material. E assim, numa profusão de cores desbotadas (típica de barraquinhas de ambulantes de DVDs invariavelmente impressos em impressoras caseiras), estavam ali expostos alguns dos maiores expoentes da música brasileira recente (em suas versões genéricas, obviamente)... o Psirico... a Nara Costa... já havia mesmo uma menina depreciando um DVD do Harmonia do Samba (como é comumente sabido em Salvador, depreciar um produto é parte significativa do processo de regateio... o provável comprador o deprecia, o vendedor o valoriza, e chega-se a um consenso razoável para ambas as partes).

Mas nisso aproxima-se um pastor evangélico, e percebendo ali na aglomeração caótica do ponto de ônibus um rebanho em potencial, se não contrito, pelo menos inerte ao sermão que viria, abre calmamente sua bíblia, mira alguns rostos mais próximos com olhar superior e, ao som de Edson Gomes e do megafone que ao longe anuncia creme para cabelo em promoção, começa a destilar seu rosário de palavras ora duras, ora condescendentes, vociferando um inferno demoníaco para os não-fiéis. Esgoelando-se para uma platéia que ignorava-o solenemente, o homem, do alto de seu paletó e gravata puídos e debaixo dum sol literalmente escaldante, suava em bicas, e só mesmo atribuindo aos mistérios da fé sua presença no meio de uma parada de ônibus, num calor daqueles, vestido daquele jeito. Uma senhora obesa, vestida numa espécie de roupa de lycra que lhe delineava as formas fazendo-a sobrar - e muito - para todos os lados, observa-o distraidamente ao lado da filha, enquanto espera seu ônibus. Está contente... afinal, comprou o som portátil que tanto vinha querendo, e o pagaria em 17 módicas parcelas mensais de R$ 10,00. Nem a filha, chorando há mais de meia hora por um daqueles picolés capelinha que o vendedor passava vendendo a toda hora a 40 centavos, conseguira lhe tirar o humor. Chega seu ônibus, pagam a passagem (com o cartão de estudante da menina) e passam juntas pela catraca, obviamente.

E o dia continua quente demais... e continuam barulhentas todas as barraquinhas de camelô... e continua gritando o evangélico... e as figuras de Salvador estão todas ali.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo texto, Léo!

Vc tem um dom de saber descrever as coisas que me faz enxergar todas essas cenas... :)

E as figuras estão em todo Brasil também... Cada uma com suas particularidades...

Beijão.

Vinicius disse...

O q'eu mais gosto em seus textos é essa capacidade de falar dos detalhes, nos remetendo ao local.

Excelente texto, meu amigo. Já estava sentindo falta...