quarta-feira, agosto 31, 2005

Morte de uma crônica anunciada

O sol escaldante da manhã de um dezembro já ido insiste em trespassar a porta de vidro, indo no compasso da hora, tocar lentamente a borda do tapete multicor em formas geométricas que forra o chão da grande sala. Sobre o mesmo tapete, numa pequena mesa de centro, podem ser vistas duas taças de puro cristal, sendo uma suja e outra virgem, ao lado de uma garrafa vazia de Chiantti, cuja safra data de 1999, testemunhas vivas de uma recente noite a dois, mas, com ausência de um corpo. Mais ao lado, no cinzeiro, restos de um charuto Cohiba Lanceros, e um reluzente isqueiro de ouro. No centro da mesa uma escultura abstrata feita de barro, e repousando junto à ela um pedaço de papel amassado. No chão, junto ao grande sofá em L, está um corpo desnudo em seu dorso forte e bronzeado, totalmente entregue à liberdade do sono. É de um homem já entrado na meia idade, como se vê no grisalho da cabeleira e da barba curta e desenhada. Tem um rosto de traços fortes, e não mais se pode formar de sua expressão por lhe faltar o brilho dos olhos, estes que fechados estão, entregues às visões da mente num sono profundo. Um pouco afastado, fora do tapete e junto ao final de uma das pontas do L do sofá, um cão labrador de pêlos negros e brilhantes está deitado com uma das patas sobre os olhos, como a não querer ver tal cena. A sala é enorme, adornada em suas paredes por várias telas de bom porte artístico e valor financeiro. Muito bem se pode ver um Kandinski, um Miró, um Portinari, um Renoir, dentre outros. Uma decoração graciosa e de muito bom gosto, típica da casa de um nouveau riche.

O corpo se mexe. O cão ensaia um abano de rabo. Lentamente o homem se contorce gemendo, e aos poucos volta à vida. O cão se aproxima a mendigar carinho. Ganha um afago despercebido e volta ao mesmo lugar. Com a ponta dos dedos, indicador e polegar, o homem alerta os olhos que já acordou. Sentado no mesmo chão olha em volta na ânsia de lembrar o que houve ali. Por um segundo pensa se tratar de mais uma noite das que pediu socorro às vendedoras de amores descartáveis, costume antigo, e companheiro de sua solidão. Levanta-se entre as dores da noite fora do conforto da cama, alonga-se devagar, e segue rumo à piscina em seu passo lento e pensativo. Enquanto o faz, tenta encontrar na gaveta das lembranças recentes e embaralhadas pelo porre, motivo plausível para a cena primeira após seu despertar nesse domingo de sol e céu azul de nuvens isento. Mergulha na água convidativa e ao sair do outro lado já tem respostas para tudo. Esperara desde as nove da noite pela mulher cuja imagem fizera parte de todos os seus sonhos, dormindo ou não, desde o primeiro cruzar de olhos meses antes dali, num vernissage de um amigo em comum.

Sentado na borda com os pés submersos rememorou cada ato desde a noite “fatídica” do insólito encontro até a quarta-feira corajosa do convite. Muito prazer, sou Sofia, disse com sua voz rouca junto a um leve aperto de mãos. Seus olhares se haviam cruzado desde que ela entrara no salão, posto que tal beleza não passaria despercebida em lugar algum. Tinha a pele de branca bruma e ímpar maciez; o rosto simetricamente perfeito, afilado, delicado; uns lábios finos com um leve brilho; cabelos negros em chanel; olhos verde-jade de uma expressão marcante, como se a todo instante perguntasse “por que?”. O resto da escultura cobria-se num vestido preto e básico, sem alças para mostrar o colo, e também o delicado colar em ouro branco que trazia no pingente um solitário brilhante. Cada grama de seu peso mostrava-se proporcionalmente dividido pelos cento e setenta e poucos centímetros da sua altura. Ele, solteiro convicto com reservas, como costumava dizer, passou a ver à sua frente a queda de seus conceitos. E não demorou muito, pois bastou meia hora de descontraída conversa para descobrir ser aquela jornalista recém-chegada de estudos na Europa, contando vinte e cinco, e solteira, sua arrebatadora paixão. Algo em seu íntimo dizia que aquela era a mulher. Sofia, assim sem “ph”, sem modismos grafológicos, tampouco superstições numerológicas. Era assim: Sofia. Simplesmente. Inteligência e beleza raras num só lugar. Todo ele estava ali, ou melhor, todo seu corpo, diante da prova cabal da existência de Deus, mas faltava uma parte, a da mente, que já sonhava com dias eternos juntos com aquela mulher deslumbrante.

Passaram-se três meses desde o vernissage, e até ali tinham mantido contatos diários, por telefone, internet, além dos encontros “propositadamente fortuitos” criados por ele, porém, sempre curtos, indignos de longas conversas. Surgiu então um certo ar de cumplicidade, entrelinhas sugestivas, mas, junto a isso, certa timidez, um tipo de “deixa que eu deixo” que só atrapalhava o nascimento de uma relação consistente. Até que num ato de coragem ele a convidou para jantar na sua casa, dois após aquele, às nove da noite, e acertado foi, e acertados ficaram. No dia tal fez o que lhe cabia, preparando tudo sem permitir-se ao erro. O clima, o vinho, a música, o jantar. Tudo devidamente pronto. Desceu para a sala bem vestido como de costume e aguardou ansiosamente consultando o relógio. Nove, nove e meia, dez, dez e meia. Ouviu todos o cds em silêncio. Meia noite abriu o vinho, acendeu um charuto, fumou mais calado ainda, baforando angústias. Amassou o poema que fizera. Sentou no chão. Secou a garrafa do vinho como se cada gole fosse um pedaço daquela ingrata que sequer teve a decência de se desculpar pelo furo. Deitou. Dormiu.

Saiu da piscina, pegou o celular e ignorou o aviso de mensagem recebida. E ligou aleatoriamente:

“Alô?”

“Meu amor! Que saudades...”, disse a voz do outro lado.

“Cecília, janta comigo hoje?”, disse ao reconhecê-la.

“Mas claro, com prazer, amor!”

“Ok! Te espero às nove, aqui em casa mesmo!”

“Combinado!”

“Beijos, tchau”

“Tchau, amor!”


Movido pela curiosidade resolveu ver de que se tratava a tal mensagem. Era de Sofia. Hesitou, quis ignorar. Não conseguiu.

“E assim, dois depois da quinta chega o domingo. Um grande dia merece uma grande noite, não achas? Beijos, Sofia.”

Ps: Cabe aqui um pedido de desculpas ao mestre Gabo, pelo trocadilho do título.

4 comentários:

Diógenes Pacheco disse...

Às vezes, o conteúdo importa mais que a forma. Cisma de falar bonito... :)

[]´s

Marina disse...

Lindo texto! ;)

Coisas que acontecem...

Adorei! :**

Anônimo disse...

Huuummm... a precipitação que engana... uma Cecília sempre disposta... e alguém a catar todas as desculpas esfarrapadas da memória, para finalizar um domingo...

E quem disse que só as mulheres se antecipam?! Belo texto, menino Múcio!

Vinicius disse...

Muito bom, meu caro. Mas queria saber o que aconteceu depois...