segunda-feira, novembro 21, 2005

Dia de greve

A noite ainda nem tinha virado dia, e já era grande a movimentação na casa do João. Mas todo dia era assim... Os primeiros sons que escutava eram sempre os das panelas batendo umas nas outras na cozinha, e da água enchendo as panelas, apesar de todo o cuidado que a Maria tinha em não acordá-lo mais cedo que o necessário. Casa-quase-barraco, paredes finas e quarto colado ao arremedo de cozinha. E logo em seguida aos sons vinham os cheiros... Do café quente misturado ao do feijão ralo, que ele comeria no almoço com arroz branco e a invariável sardinha frita. E mais algum pedaço de qualquer coisa que a Maria, com sua criatividade amorosa, sempre inventava de magicamente fazer aparecer em sua marmita. Era o cardápio de todos os dias. Obviamente, engolido frio. Ou de outra forma não carregaria, ele e outros tantos companheiros de sina infeliz, a alcunha de bóias-frias.

João sai vagarosamente da cama. Afinal, a última coisa que iria querer é acordar um dos meninos, espremidos no colchão ao lado do que ele próprio dormia. Levantavam um pouco depois dele, pra ir à escola comunitária. Fez a rápida oração diária, imaginando mais que vendo as formas do santinho no ambiente quase sem luz do quarto, e saiu. Hoje era dia especial. A reza tinha de ser caprichada. Ao ver as horas, notou que acordara cedo demais... ainda teria uns minutos sobrando. Sentou-se no banquinho de madeira ao lado da mesa, e iluminado pela réstia de luz vinda da cozinha, começou a olhar em volta. A casa de 2 cômodos nunca parecera tão minúscula, pobre e mal-cuidada... e pensar que mesmo o aluguel dela ele teria dificuldades pra pagar no final do mês. As despesas no armazém do povoado aumentando também... e o material escolar dos meninos... A tv com defeito...donde tirar o dinheiro pra consertá-la? Ligou o radinho a pilha e começou a escutar baixinho a rádio local. O locutor, animado, comentava que a safra dos canaviais deste ano prometia colheitas recordes! Como se isso fosse mudar o que quer que fosse na vida dele ou de qualquer dos outros cortadores de cana da região...

E vieram à mente do João, num turbilhão desencontrado de cenas, a chegada do pessoal do sindicato uns 6 meses atrás. Gente danada de atinada aquela! Meninos tão novos, e no entanto falando tão bonito, coisas boas de ouvir. Muitos deles filhos de gente dali. Afinal, não era o menino do cumpadre Getúlio (que o João vira nascer, ali mesmo na roça ao lado da sua) um dos mais inflamados? Falando de como eles eram importantes, e da relação deles com a terra. Da exploração diária de seu trabalho a que estavam sujeitos pelos patrões. Falavam da necessidade de assinar suas carteiras... em melhorias trabalhistas... e tanta coisa que dava gosto! Muita coisa o João nem mesmo entendia. Homem de poucas letras, acostumado ao vocabulário monossilábico da enxada, lhe era muito difícil entender toda aquela filosofia. Ainda mais depois de um dia inteiro debaixo de sol a pino, com cana lanhando o corpo. Mas daí olhava meio de soslaio em volta e percebia as caras atentas, parecendo entender tão pouco quanto ele próprio, o início de sorriso aparecendo em algumas das bocas desdentadas, a desconfiança em outras. E as coisas que os meninos falavam, igual ao cheiro da cana logo em início de safra, foi se alastrando. E tomava conta de tudo. E aos pouquinhos os trabalhadores se perguntavam do porquê de serem obrigados a comprar nos armazés que os patrões mandavam... e as jornadas de trabalho? Precisavam mesmo ser tão longas?

E os usineiros? Os usineiros haviam sabido das tais reuniões. E tomavam providências. João bem que percebera que os forasteiros caladões que vinham aparecendo ultimamente nas reuniões andavam armados. Nem tentavam mais disfarçar, arrotando valentias entre os grupos de trabalhadores. E ainda assim os sindicalistas decidiram. A situação estava impraticável e, pra demonstrar força, os cortadores precisavam parar. Greve? João nem sabia direito que diabo era uma greve... E o patrão lá ia querer saber de bóia-fria preguiçoso, que fica parado de corpo mole? Mas tanto fizeram os meninos do sindicato, e tanto falaram, e tanto conversaram, que cá estava João, a ponto de participar de sua sua primeira greve. Não comentara com a Maria. Criatura simples, Maria sempre implicara com o menino do Getúlio, "moleque mais cheio de prosa, que só quer saber de farrear". Seria difícil fazê-la entender o que era a tal da greve, ainda mais quando ele próprio estava tão incerto ainda. João tinha 57 anos... Matuto sem instrução, batalhara a vida inteira no cabo duma enxada, ajudando desde cedo o pai na lida (outro pobre coitado igual a ele). E o que conseguira com isso? Calos nas mãos agora já meio fraquejantes, o cansaço no corpo surrado por tanta privação, e nada mais? E essa tal dessa coisa que esse pessoal inventava agora? E se não dá certo? Ser posto pra fora desse pedacinho de terra a essa altura da vida... e se não...

- Pai.
- Oi filho. Já acordou? Nem tinha te visto aí! Tava aqui matutando um pouquinho.
- Vai pro canavial hoje não, pai?
- Vou sim... Esperando tua mãe preparar a bóia. Que é isso?
- Livro que a professora mandou a gente ler, pai. Olha só que bonito!
- É... bonito, né? (João, que estudara até a quarta-série primária, já esquecera há muito das letras...)
- Quem escreveu foi um homem chamado Graciliano Ramos, meu pai. É bom ele! Fala de gente como nós, sabe? Eles tem uma cachorrinha, e tem de sair das terras deles. E a professora disse tanta coisa pra gente.
- E o que ela disse?
- Ah... falou da importância de se ter sonhos, e de ter respeito pelas pessoas. E de como quase sempre as pessoas que tem muito tomam de quem quase não tem, como nós.
- Ela disse isso?
- Disse sim... danada de boa essa professora! Ela fala tanta coisa pra gente! E eu tô gostando tanto do livro... E ela falou também que vamos ler mais livros desses daqui pro final do ano.

E João lembrou do pequenino, ainda outro dia um moleque andando nu pelo terreiro em frente à casa, correndo atrás das galinhas. E agora ei-lo ali, falando como gente grande, e até lendo livros! E o menino começava a entender o mundo. E João o queria na escola. Era lá que ele leria mais dos tais livros, e era lá que ele entenderia coisas pras quais ele mesmo, o João, só agora tomava tento.

E é por ele, o pequeno, que João pega num canto da sala seu podão e a marmita, dá um abraço carinhoso na mulher, envelhecida pelas agruras todas que viveram juntos, e com o sorriso que tem a beleza simples dos que trazem consigo a razão, sai pra sua primeira greve. E que viessem os cabras intimidadores... e que viessem tantos usineiros quanto quisessem...

2 comentários:

Marina disse...

Nem saberia comentar nada agora... Teu texto tá lindo... Adorei o diálogo entre João e o filho... E ainda há esperança, beibe... Ainda há esperança...

;*

Anônimo disse...

Excellent, love it! » » »