quarta-feira, janeiro 18, 2006

Crime ou castigo?

Bateu a porta com força, e para trás deixou o pouco que tinha, entre ecos do estrondo, e uma enorme vontade de mudar de idéia. Desceu as escadas tateando o corre-mão enferrujado do casarão centenário, e, praguejando a escuridão foi dar na calçada aos solavancos. Recompôs-se. Seguiu meio sem rumo pondo o que restava da camisa amassada para dentro das calças. Caminhava e olhava para trás, e para o alto, no afã de ver na janela algum resquício de sua importância. Nada viu. As poucas pessoas cruzavam fitando-o atônitas, pelo seu mais atônito jeito de estar, àquela hora da noite, e ali. Aquele emaranhado da cabeleira, a barba de dias, as olheiras de noites, e um olhar de fome de vida.

Parou no mesmo boteco inóspito de sempre, e no balcão, sem dar pela ausência de bancos, sorveu de goles um conhaque duvidoso. A música do ambiente falava de amores imperfeitos, e ele, sem falar, pediu outra dose. Num replay da cena anterior, sorveu seu conhaque revolucionário. O jejum acelerou a reação do álcool no corpo, e aquele balcão se fez um cais para o navio que ficou ali aportado ao sabor das marolas. Na cabeça um filme das últimas horas. A atmosfera lasciva da alcova, o fumo, o cheiro da fêmea no seu, os olhares trocados, sons, gostos, carícias; a pequeneza das palavras soltas que ecoavam sem nexo entre aquelas paredes destacadas pelo mofo. Tirou do bolso uns trocados, pôs sobre o balcão na mudez mesma, e trôpego se afastou. No banheiro fétido viu-se de chofre num espelho de bordas carcomidas. Um susto!
Lembrou que dentro dele havia alguém pior, lascas de um ser, naquelas “qualidades” que os espelhos ocultam. As mãos molhadas na pia suspeita escorregaram no rosto como que com vontade de transmutá-lo, ou mesmo, despertar daquele estado onírico, mas nada disso era.

De volta à calçada, a rua lhe pareceu mais escura, ou seriam seus olhos embaciados pela culpa. Seguiu, mas não sem antes repetir o olhar àquela janela, que por sinal, era a mesma desde o último. Rua afora em passos trôpegos, aquele corpo ora vazio, foi levado pelo acaso. Com muito custo chegou ao final do bairro, onde a última ruela desembocava num vasto cais. Do belo mar à sua frente, ondas desprezadas jogavam-lhe respingos. Nada via, a paisagem viva era como uma tela em branco. Na mureta sentou-se, e com a cabeça entre os joelhos, embarcou numa louca viagem, com o inconsciente transformado em monstros, cenas terríveis, gritos, e afins. Minutos depois, o irreal soltou de dentro, e olhos abertos ou fechados surtiam igual efeito. O corpo seco levantou, atormentado, mãos em vão a se defender da perseguição, saiu entre corridas breves e passos lerdos, a repetir o caminho feito há pouco.

De volta à rua da janela muda, já sem ver nada além das inefáveis companhias, refez o trajeto isentando o bar, e como um autômato, esbarrou na porta entreaberta do casarão centenário. No mesmo tatear praguejado, subiu as escadas tropeçando. A porta era a mesma, ausente do eco, como numa fotografia. Abriu-a lentamente, e o cheiro mesmo de sempre lhe invadiu as narinas. Sorrateira, leve e calmamente, como se sóbrio estivesse, escorregou para dentro do ambiente insólito. A partir dali, o tatear se fazia inútil, pois, como ao corpo dela, conhecia bem o caminho até a cama. Assim o fez.

Deitado, um corpo na cama parecia jazer, de tão imóvel. Desnudo, mostrava no breve reflexo que vinha daquela janela, a perfeição mais justa numa meia escuridão. Chegou mais perto, tremia. As mãos percorreram a doce extensão desde os pés à cabeça, mas num tom de idolatria, sem tocar. Ajoelhado ao lado da cama, na altura da cabeceira, buscou sentir a respiração, inutilmente. Tremia mais forte, esfregava as mãos no próprio rosto, queria tirar a máscara, em vão. Num ato de desespero, agarrou-a pela cabeça, puxou-a para si, e beijou-a com força, como a querer trazê-la de volta. Sangue no beijo. Sentiu sua boca encharcada. Ignorou, seguiu beijando-a cada vez mais. Agora o sangue jorrava. Ainda mais desesperado, tentou estancar o jorro, mas nada o fazia. Num gesto absurdo, olhou em volta e berrou impropérios às visões, culpando o imaginário de seus erros, em especial daquele. E ao ver que os monstros vinham em seu rumo revidar, viu-se encurralado, e restando-lhe apenas a janela cega como ponto de fuga, não pestanejou. Largou-se do terceiro andar em vôo cego rumo ao chão, e lá chegou num estrondo abafado, seco.

No dia seguinte, quando a rua jazia sobre o domínio do astro-rei, transeuntes distraídos tropeçam no que seria o corpo de um bêbado, que na noite anterior adormecera ali, à porta de um casarão abandonado. Este, enquanto embalado a sono solto, balbuciava palavras vãs, que um ouvinte mais atento diria serem sobre amores e mulheres.

3 comentários:

Leonardo Caldas disse...

sabe que o finalzinho lembra um pouco os bêbados-poetas de jorge amado?
o dia amanhecendo... e as palavras de mulheres e amores que ninguém nunca iria chegar a escutar...
belo como sempre, múcio... belo... belo...

Marina disse...

Nossa! :P

Perfeito, Múcio! Perfeito!


:*

Marina disse...

"olhar de fome de vida"

Lindo! ;*