sexta-feira, janeiro 13, 2006

Dom Quixote tupiniquim

Final de ano, sempre a mesma coisa. A Rede Globo faz a sua tradicional campanha publicitária, com seus quadros desejando um mundo melhor para todos nós, e belas imagens com aquela música de fundo que bem conhecemos. Tudo bem bonitinho, como só ela sabe fazer, unindo o clima a certos componentes da época. Um desses, a Corrida de São Silvestre - que na minha infância era à meia-noite, e foi manipulado pela poderosa a ponto de ser realizada atualmente às três da tarde, o que a fez perder todo o encanto -. Sempre nos dias que a antecedem, vêm aquelas matérias, onde a produção escolhe um personagem folclórico entre os inscritos e vai em busca de riso ou lágrima. Nessa edição viu-se uma nonagenária nissei que já ganhou várias vezes em sua categoria, depois de ter sido aconselhada pelo médico a caminhar para se livrar de uma forte depressão. Ou um outro que sempre sai fantasiado de modo a aparecer na televisão.

Dessa vez um caso específico me chamou atenção pelos ingredientes: um cabeludo à Conselheiro, um barraco à deriva, um córrego inóspito, e a chuva. Estava armada a cena predileta da tv-mãe. Elias, um desempregado, vivendo de biscates para sobreviver com mulher e filhos num barraco de madeira, se equilibrando à beira de um córrego imundo.
Dentro de seu vasto ângulo de esperanças, juntou uns trocados sabe-se com que sacrifício, adquiriu uma pseudo-bicicleta ergométrica para treinar resistência, e, com isso, tentar a sorte na prova. Sair com a família dali para um pouso onde a dignidade passasse na porta, era seu anseio principal, depois do mais urgente. Não limitando o treinamento às pedaladas; Elias também corria descalço pelas cercanias do bairro, o que levou o repórter a filmar o nosso Quixote tupiniquim pelas ruas em sua disparada descalça. Câmera no carro, povo nas ruas entre aplausos e vaias.

Diante daquilo me lembrei de uma notícia de roda-pé que havia visto numa edição de Veja não muito tardia, sobre um aposentado carioca que morava nos fundos da casa da irmã. Amputado das duas pernas pelo diabetes, sobrevivia com uma pensão de 300 reais. Jogou três bilhetes na mega-sena, e ganhou 53 milhões sozinho. Estaria o ex-pobre assistindo àquilo? Algum rico com desprendimento estaria disposto a ajudar o nosso Elias de la Mancha? E fui dormir pensando em tudo, e no meu afã particular acreditei que no dia seguinte a Globo voltaria lá, e em nome de algum ser imbuído pelo espírito de natal, ajudaria o morador temerário. E me pus no lugar do Elias, imaginando como seria a sua noite, dividido entre o medo e o sonho. O medo da chuva, e agora, a esperança breve de rever o repórter Mauro Naves. Quantas noites já sonhei acordado, ali naquele terreno onde somos semi-deuses. Elias também o estaria àquela noite...


Passaram os dias, e nada. Eis que em São Paulo chove muito, e quando tudo já beirava a casa do esquecimento, me aparece no ar a repórter-poeta Neide Duarte, com sua voz compassada e bem colocada. Falava de uma enxurrada que caíra na noite anterior na capital paulista. O cenário era desolador; barracos, ou, restos de barracos, pessoas desconsoladas, crianças de pés no lamaçal, e, ao fundo estava o velho Elias. Como já era “conhecido”, foi logo chamado a declarar alguma coisa. Cantou seu lamento em clichês, e disse ter tido sorte, posto que saíra de casa com a família minutos antes da tragédia, empurrado por uma premunição. E seu nome de profeta não foi em vão, já que a televisão acabou voltando. E a mim restou assistir a tudo indignado, àquela prova viva do descaso público, e também de que o espírito de natal não funciona sempre. A matéria foi encerrada com o kit-lágrimas de sempre, um zoom no rosto cansado de um batalhador, que sentado numa pedra, acariciava um fragmento do sonho perdido; lascas de sua pseudo-bicicleta ergométrica.
Ps: Elias chegou 20 minutos após o vencedor, e a Globo estava lá.

3 comentários:

Leonardo Caldas disse...

acho que no final das contas, elias está correndo uma corrida que já sabia perdida quando entrou...

e, nascido do lado errado do mundo que foi, ele e mais todos os outros elias do mundo, a quem - como você tão bem colocou em teu texto - não cabem as fantasias de palhaços nas corridas de final de ano, estão fadados aos "20 minutos depois do vencedor"...

e isso - infelizmente - globo nenhuma vai mudar.

Diógenes Pacheco disse...

A verdade é que poderia ser ainda pior, e ser fútil, como um "Tudo ou nada" do Huck.
Esperar algo de fora é complicado.

[]´s

Diógenes Pacheco disse...

(Não que devesse ser, num caso como esse.)