segunda-feira, junho 26, 2006

Para Johannes Mario Simmel

Era noite de domingo. Muito fria... chuvosa demais... E o menino vestido de trapos tremia. Era uma chuva muito grossa, daquelas que caem fazendo alarde, e a gente quando olha pro céu chega a ter medo... Da escuridão em cujas entranhas a vista não consegue entrar, apesar de nem ser ainda tão noite... do peso de bloco enorme e coeso de nuvens às vezes cinzas, outras pretas... A chuva torrencial que caía já seria dolorosamente fria pra um adulto... e ele era só um menino (vestido de trapos), que do alto da inocência dos mal completados treze anos tentava como melhor podia se arranjar no meio de pedaços de papelão já tão ensopados que já se tinham tornado num bolo disforme de qualquer coisa descolorida. O menino vestido de trapos tremia de tal forma que já não sentia as caimbras nas pernas, desconfortáveis que estavam pela posição de semi cócoras. E ele já pensava com dificuldade... olhava os reflexos amarelados e incertos que os poucos carros que passavam rápidos riscavam na pista logo à sua frente. E dos carros o pensamento voa pra algumas semanas antes, quando tudo que fazia sentido em sua vida desaparecera... sempre fora filho de família pobre. Saía muito cedo de casa pra ajudar como podia na renda da família. Vendia doces... engraxava sapatos... e naquela noite fatídica voltara do dia de trabalho pra ver a confusão enorme próximo ao barraco onde morava. Com as chuvas, houvera um deslizamento. Tudo que era seu se perdera. O minúsculo quarto... os poucos brinquedos de latas e pregos... as roupas... os pais... E foi só muitas horas depois, quando já tinham se ido os homens de gravata e os policiais, que o menino (que até ali, mesmo com toda a sua pobreza, nunca vestira trapos) percebera o alcance de tudo aquilo. Não tinha mais sua mãezinha... nem tampouco o pai, carinhoso lá do jeito ríspido que a vida o forçara a ter. Não tinha mais ninguém no mundo. E saiu andando... não sabia pra onde iria... nem lhe importava muito. As últimas semanas foram de um mendigar aqui e ali, até chegar àquela praça, que pelo menos era um bom lugar pra passar as noites. Pelo menos quando não chovia...

A viúva levantou um pouco os olhos em completo êxtase. Era como se a mornidão daquele ambiente de completa elevação espiritual fosse imune às intempéries da natureza agindo logo ali tão perto. De vez em quando chegava, como que desafiando a atmosfera abafada do lugar, uma rajada de vento frio e cortante vinda de fora. Mas era logo como que rechaçado pelo calor de tantos corpos juntos, que acabavam por se fazer mais fortes pela força de seus cantos, entoados sob luz oscilante das velas e das lâmpadas, e o cheiro forte e inebriante do incenso. Nestes últimos meses estes eram os poucos momentos em que tinha um pouco de paz interior. O marido, já falecido há muitos anos era hoje uma pálida e distante lembrança de tempos mais felizes... Nunca casara novamente, e a alegria única e maior de sua vida era o filho. Menino caprichoso, cursava medicina e orgulhava a mãe com sua natureza bondosa e sonhadora. A notícia de sua morte num assalto quando voltava dum barzinho onde havia ido com uns amigos havia sido um choque tão grande que ela nem chorara... É que acalentava secretamente a esperança de vê-lo entrar pela porta a qualquer momento, o ar despreocupado e juvenil, beijar-lhe a testa e lhe contar de seu dia. Daí não ter acompanhado os noticiários, nem ter sabido que haviam sido presos e julgados os assassinos do filho. E nem lhe interessaria... O filho viria um dia, com a doçura característica do olhar, e sorriria pra ela. Era nisso que pensava quando, olhando mais uma vez a beleza da arquitetura a sua volta, cercada por santos de semblantes bondosos, levantou-se com a leveza e serenidade natural nos que tem crença.

Puxa, como estava frio!! Mas pelo menos a chuva havia passado. Agora era só a fúria da água que, entupidos os bueiros, procurava por onde escoar. Desceu vagarosamente a escadaria da igreja e passava pela praça quando notou o que parecia ser um monte de papelão se mexendo. A curiosiade venceu o medo, e aproximou-se mais alguns passos. O papelão tremeu um pouco, e apareceu uma pequena mão. Não era um animal procurando restos de comida. Havia uma pessoa ali! O primeiro instinto ainda foi se afastar... mas a mãozinha era tão pequena... parou. Era um menino. Um menino vestido de trapos. E olhava pra ela. E tremia tanto. E os olhos... os olhos eram de uma desesperança tão grande... mas ao mesmo tempo havia tanta ternura... tanta carência...

- Ei menino. Onde você mora?
- Moro em lugar nenhum não... Durmo aqui.
- Não está com frio?
- Muito...
- ... (os olhos são duma ternura tão grande!)
- ...
- Porquê não vem comigo? Vamos arranjar umas roupas secas pra você vestir...

E tocavam os sinos. Mas nenhum dos dois escutou...