sexta-feira, julho 28, 2006

Enquanto isso, no Oriente...

A saudade chegou mais cedo àquela manhã, e veio num dia de julho com chuva fina e frio ameno. No quarto, pelo vidro embaçado da janela, entrava uma pouca luz de dia recém-nascido, opaca e tímida. Os olhos do homem se abriram lentamente, e foram buscar do ambiente o costume, o ar, o pertencer. Aos poucos deu por si num lugar comum, algo que aos olhos não era estranho. Era sim, o seu quarto. O mesmo de todo o sempre, desde que passara a viver sozinho, num chalé de viúvo beirando a estradinha da Praia Velha. Pôs-se de pé com dificuldade vencendo com gemidos as dores de velho solitário. A estranheza visual deve ter sido à custa de um sonho que vinha tendo, e de tão real, quase se misturou à realidade, posto que a imagem do sonho era a mesma do quarto. De pé, perto da janela, ele deu uma espiada no que o “lá fora” apresentava, e viu que nada parecia diferente da véspera, de quando desligou o refletor, soltou o cão de guarda e se recolheu. De tudo parecer tão igual, demorou a se dar pelo que lhe ia no peito, e, bastou um rasante de beija-flor para sentir o clique mágico, o chamado inevitável das lembranças. Formou-se então um breve sorriso nos lábios que se escondiam entre a longa barba e bigode brancos, cultivados desde uma data muito peculiar. Escorreu as mãos entre os longos fios brancos lentamente, e mandou o pensamento voar.

A pracinha de bairro era a imagem que viam agora seus olhos fechados, ocultando suas pupilas opaladas. Meninos correndo, uns a soltar pipas, outros com uma bola à frente dos pés descalços, suor escorrendo na testa, grudando nela umas mechas negras. Numa calçada adiante, duas amigas passeiam com seus bebês, e um quê de vida normal pulsa no ar. Sentados num banco, ele e sua esposa, mãos dadas, apreciando aquele instante de paz, num tempo em que se encontrava essa palavra no dicionário local. Desse dia, o homem também lembrou ter levantado do banco, ido num canteiro ao lado, colhido uma rosa e dado a Nashyila, sua jovem esposa, “dona de belos olhos violeta, e lábios com uma doçura inigualável”, como dizia uma cantiga de seu povo. Nashyila não lhe deu filhos, e viveram um amor bonito, entre as guerras e os períodos de paz que a vida ali lhes presenteou, até o dia em que ela foi chamada à casa do Pai. Ele costumava dizer que um sorriso de sua amada lhe valia mais que uma mina de ouro, e se, por obra Divina, ela morresse antes dele, se faria sozinho até chegar a sua boa hora, e, deixaria a barba ao tempo.

Nashyila se foi por obra de um câncer fulminante, e o pouco tempo de doente lhe poupou dores maiores. Dali em diante, como o pior triste, ele mudou-se para o Brasil, deixando para trás sua terra natal que lhe foi tão ingrata, lhe roubando tanto sangue. Escolheu um lugar junto ao mar, como era sua Tiro libanesa, e ali foi esperar que as voltas do relógio passassem moendo suas lembranças. Àquela manhã elas estavam mais fortes que o normal. Ainda de pé, na mesma janela onde vira o beija-flor, ele remoeu saudades de dias idos ao lado dela, olhos fechados, semblantes mutantes, sorriso de canto de boca, lágrimas furtivas. Saltou do muro das saudades apenas quando seu fiel cão de guarda latiu do lado de fora, então se deu por vivo e foi viver. Seguiu a sua rotina diária, do caminhar na praia cumprimentando os vizinhos, ao alimentar os pássaros que criava soltos. E como sempre, à hora mesma, depois do meio dia, ligou a televisão para as noticias de além-muro.

O homem estava de pé frente à televisão. Na propaganda um cãozinho faz estripulias com seu dono, e o locutor fala ao fundo sobre as benesses de uma ração especial. Entra o noticiário, o apresentador dá contas sobre um crime banal, depois sobre a cotação do dólar, a previsão do tempo. Mais do mesmo, pensa o homem, ainda de pé. De repente o noticiário muda. Flashes de uma guerra. Um ataque. O velho pára. Vai sentando devagar, sem desviar suas pupilas azuis da tela. A legenda aponta o Líbano, a cidade de Tiro, ao sul daquele país, beirando o mar Mediterrâneo. Pasmo, ele busca nas imagens vestígios de algo seu. Reconhece de imediato a pracinha, a mesma das lembranças de há pouco. Agora não mais havia praça, escombros apenas. Esfregando os olhos, sequer fez força para buscar uma lágrima. Lágrimas não avisam na dor. Reviu seus melhores momentos ali, reviu Nashyila sorrindo, recebendo sua rosa, e reconheceu que os meninos que jogavam bola àquele dia, hoje estariam fatalmente mortos, ou, carregando os fuzis do terror. Fecham-se as cortinas, lágrimas num chalé da Praia Velha. Sangue numa praça em Tiro. Intolerância no coração dos homens.

2 comentários:

Anônimo disse...

:~
ô racinha, viu?
:/
:*

Anônimo disse...

Belíssimo texto, Múcio!

Essa vida que dói e que mata...



;**