quarta-feira, agosto 10, 2005

Minha primeira vez...


Dona Margareth, sim, dona, era assim que se chamavam as professoras à época em que eu estudava o primário, bem antes de alguém, e sabe-se lá quem, tê-las rotulado de tias extra-oficiais. Devia eu estar lá pela casa dos... Nem lembro em que casa dos anos andava eu. Certo é que fiz meu primário no tempo normal, pois só mais tarde é que desandei, ou melhor, empurrei os estudos com a barriga e sai dos trilhos do tempo certo. E vejam vocês que anos depois fui descobrir Pessoa dizendo “ler é nada, estudar é maçada...”; ou seria o contrario? Delírios poéticos aos poetas cabem. Lembrar a idade parece bobagem, principalmente se eu disser lembrar-me de um cheiro daquele tempo, pequena mostra de que a memória tem o dom de nos tripudiar, e faz uso deste quando bem entende, e a nós cabe uma porção de subterfúgios para fugir da pecha de mentirosos. Idades e mentiras, meninas de mãos dadas a passear pelas ruelas da mente humana. Mas, era do cheiro que ia falar, e relembrar desse aqui nesta linha é senti-lo a invadir-me as narinas outra vez. Posso até rever os trabalhos depois de prontos secando ao sol, e nossas toalhas penduradas num pequeno varal, devidamente identificadas com nome e série. Falo dessa tinta guache, é este o nome. Não sei se esse produto carrega o desrespeito de ter outro nome em outra parte do país, posto que aqui, somos dados a batizar nomes mil a uma coisa única, artifício, que, em minha opinião, só deveria se encaixar às línguas diferentes, como natural é. Portanto, como vivemos num Brasil cheio de Brasis outros dentro de si, com seus dialetos vários, há que se aceitar essas diferenças da língua. Trata-se de uma tinta de uso escolar para trabalhos manuais, hidrossolúvel e portanto, não prejudicial às crianças. Quem conhece bem o sabe; seu cheiro é forte, mas a mim era agradável, tanto que alguma ferramenta no meu cérebro o guardou e sempre que mostra o traz ao lado de boas lembranças. Mas a minha idade à época, essa não lembro.

Dona Margareth, essa tinha um ar sisudo, uma seriedade natural ao cargo que exercia, o de diretora de uma sucursal do inferno, pois capetas, sim, é o que éramos. No horário de aula, e bem poderia aqui meter uma analogia além do homônimo, em épocas distintas, claro; e chamar a nossa de Dama-de-Ferro. Fato é que ainda não era a primeira-ministra lá tão famosa; e talvez ainda não fosse detentora do tal cargo, assim como o nosso saber mal atravessava a rua, quem dera o Atlântico. Mas nossa professora era assim, cara-dura, pelo menos em classe, no horário da aula. De beleza também não era assim provida, mas fora dali era simpática, e foram inúmeras as vezes em que a ajudei carregando seus livros, posto que sua casa era eqüidistante entre a escola e a minha. Ali ela sorria, brincava, era normal, como se deixasse a outra no trabalho, aquela que na ocasião propícia a uma gargalhada nos brindava com um quebra-lábios à Monalisa. E foi com um desses sorrisos que ela nos deu um aviso na última semana de aula do primeiro semestre, o que bem poderia ter sido um palavrão, por efeito e causa tão idênticos: Leitura de férias! Espanto. Protesto. Murmurinho. E a Monalisa ali, cruzados braços à espera da calma ficou.

Entrei na livraria emburrado, e logo fugi do sorriso interesseiro do balconista que sempre me vendia figurinhas diversas de álbuns idens. Segui a prateleira da direita passando pelo jornal do dia, a revista semanal, a de mulher pelada, e lá, bem no fundo, renegada à importância que deveria ter para o dono da loja, e até então para mim; estava a prateleira dos livros não-didáticos. Ali, frente a frente, livros e eu. Passeei com olhos descontrolados entre títulos vãos, olhos que se quedariam de bom grado diante de uma única revista de mulher nua por férias inteiras. Já precedendo uma urticária, saquei mão de um não muito grosso, de capa estranha e título fantasioso: A Volta ao Mundo em 80 Dias. Um Julio Verne. Ficção científica para um iniciante, não creio ter feito boa escolha. Acariciei o exemplar, pensativo. Um mês de férias, tempo antes dedicado ao ócio, à bicicleta, à rua, às peladas (babas, em Salvador), agora deveria dividi-lo com as páginas de Verne. Paguei. Levei. Tarefa árdua aquela de ler nas férias, principalmente pela obrigação de prestar contas na volta, afinal, a Monalisa exigira um resumo da obra lida. A responsabilidade estava atrapalhando meu lazer. Comecei a leitura, mas escolhi um péssimo local, rente a janela. Um olho na missa, outro no padre. Os amigos sem-livro-pra-ler-nas-férias pedalavam rua acima, e o “culto” encarando aquela chatice a bordo de um balão. Alternei livro e férias com certa disciplina na primeira semana, e parti logo para a leitura dinâmica. Em seguida fui para o recurso “embromation”. Rabisquei um resumo viajado e entreguei na volta para uma Monalisa falsificada, talvez pelo sorriso mais amplo ao nos rever; já outro não lhe cabia que não o quebra-lábios àquela ocasião, a de ter os diabinhos de volta.

Depois da primeira vez, e do trauma Verne, demorei muitos anos para voltar a abrir um livro com intuito de distração. Quanta vida perdida. Até que um dia me caiu no colo um exemplar de O Germinal, de Zola, e depois outras pérolas como Os Miseráveis, de Victor Hugo; Crime e Castigo, de Dostoievski; Dom Casmurro, de Machado; O Retrato de Dorian Gray, de Wilde, e tantos outros. Atualmente, quando me vejo prostituído, entregue às orgias literárias, lembro-me desse episódio distante, e faço minha vez de Monalisa. Livros vieram, vêm e vão, e nessa viagem literária não mais me deparei com a “verossimilhança científica” daquele escritor-visionário francês que cantou algumas pedras tecnológicas como televisão e o rádio. Preciso reencontrá-lo o mais breve, e quem sabe, a bordo de um balão, para assim concretizar com ele a minha primeira vez.

Alguém tem um Julio Verne aí?

Luz e Paz!





4 comentários:

Marina disse...

Nossa... Texto gostoso de ler... Singelo, poético... belo!

Também só fui me apaixonar pela literatura mais tarde... já na época de segundo grau, pré-vestibular... :P

Ahh, quando eu era menina, adorava a Turma da Mônica! =D~

Muito bom, Mú! ;***

Anônimo disse...

sua familia é, de verdade, uma comédia..... as duas...

Anônimo disse...

Cool blog, interesting information... Keep it UP » »

Anônimo disse...

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