quarta-feira, janeiro 25, 2006

Memórias de um soldado de exército

Pedrinho nasceu no interior de Pernambuco, a duas horas da capital. Cresceu correndo nas ruas de terra batida da Vila da Cohab. Cabelos loiros e revoltos, com mechas grudadas na testa pelo suor das pernadas diárias; eis sua fiel caricatura. Um pouco maior que os moleques da sua idade, era um fiasco nas peladas, exceto na posição de goleiro. As bolas altas não tinham vez, já as rasteiras... estas se deparavam com um cego que mal as tateava, era gol na certa; deixando às exceções, as que porventura, ou má pontaria, resvalavam nas suas canelas pretas, pintadas pela poeira da várzea. Havia ocasiões em que o magricela era o dono da vez, e na escolha da linha, coitado, via-se de fora do próprio time.

Era um bom menino. Travesso, sim, como todos que passaram por essa época; e atire a primeira vidraça quem nunca foi pedra. No futebol era isso. Nas brincadeiras de polícia e ladrão, corria à beça, no time dos ladrões. Era muito mais emocionante. Nunca soltou pipas, não, era desajeitado demais para tal. Foi bem no jogo de chimbras, posto que perdia poucas.

O sonho do garoto era pilotar um carro. Era paixão daquelas. Quando bem menor, reconhecia de ouvido o ronco do motor de um Jeep, de uma Aero Willys, com exagero e tudo da mãe coruja. Lá pelos onze anos já era o manobrista oficial da casa. Tinha a manha de pôr o carro das visitas num tal espaço entre um coqueiro e o muro, que acabava por lhe roubar o melhor do sono às seis da matina, para tirá-lo de volta. Mas o orgulho lhe era estampado num sorrisinho de canto de boca entre olhos inchados. Aos 14 já dirigia pelos caminhos da praia com os pais. Na passagem pela policia trocava de lugar, e de soslaio sonhava olhando o guarda, com o dia em que o faria sozinho. E assim foi que bastou fazer 18 ele correu para tirar a carteira, esta que só foi usada aos 20, após ter saído do exército. E foi lá, por conta dela, e do sobrenome, que virou logo motorista de oficiais.

Aos dezoito o rapazote de 1,82m alistou-se nas forças, e seguiu para a capital para as entrevistas de seleção. Caiu de bandeja na Polícia do Exército, para sair dez meses depois, com amigos feitos e uma saudade aliviada. Menos mal mesmo foi ter morado esse tempo numa quitinete à beira-mar de Olinda, com a tia Cida. Era delicioso abrir a janela aos fins de semana, e ver aquele canavial malemolente banhado de sol e mulheres com suas asas deltas, o must da época em questão de bikinis. Durante a semana, antes de o sol subir, o ritual era o mesmo. Saltava da cama, corria pro banheiro, e debaixo das gotas glaciais do chuveiro se barbeava. Saía de lá devidamente fardado, e cheirando à loção. À mesa, fumegante, um prato de mingau de aveia, ou, como se diz aqui em PE, “prato de papa”. Aquilo nos primeiros meses, com a brisa de inverno que insistia pelas frestas, era uma delícia. Mas, Pedrinho vinha meio que enjoando da iguaria que inebriava o apê com o odor de canela e aveia. Astuto, bolou o estratagema. Passou a deixar a papa na geladeira, com o intuito de deliciá-la à noite, quando voltava varado pelo mau trato alimentar da caserna. E foi assim por duas semanas. Chegava e traçava o pratinho gelado com prazer, até o dia em que ecoou no minúsculo recinto:

“Ô Pedrinho, tu não estas comendo a papa de manhã?, por que, hein?”

“Ah tia, é que eu gosto dela geladinha, quando volto com fome...”

“Ah tá... tá certo...”


E lá foi o soldado deitar. Dia seguinte, sol dormindo, levanta Pedrinho meio sonâmbulo rumo ao banheiro, e, inebriado pelo cheiro mesmo de cada dia, sequer olhou para a mesa. Banho. Barba. Frio. Farda. Saiu do ritual direto para ela, e perplexo ficou ao parar diante do seu lugar, quando viu que lá estavam dois ilustres pratos da mesma papa...









5 comentários:

Marina disse...

Eu gostava de papa! rs... ;p
Mas, uma vez ou outra... Não todo dia!

Belo, Mu!

Como só você sabe ser...

;*

Leonardo Caldas disse...

aqui vovó (essa mesma do último texto) fazia o que por aqui se chama de "mingal de cachorro"... pelo nome dá pra imaginar a delícia, né... ecaaa

gosto da forma como escreve, múcio... nunca é demais dizer... sem sombra de dúvidas, o mais adulto entre nós :)

Diógenes Pacheco disse...

Certamente o mais adulto. :)
Tia boa, essa!

[]´s

Diógenes Pacheco disse...

Ô, categoria - procurei no dicionário e no Google, mas não descobri. O que são "chimbras"? O que é o jogo de chimbras?

[]´s

mg6es disse...

Baiano, essa regionalidade às vezes atrapaia, né? Na mi terra é o mesmo que bola de gude. Rsrsrs

[]´s

Ps: meu teclado tem sem o agá!