segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Toda sexta-feira todo o mundo é baiano junto

Salvador é cidade de duas estações... Uma delas, feia, fria e cinzenta, brinda a todos que dependem de seu sistema de coletivos com um pé d'água logo cedo pela manhã. E lá se vão, guarda-chuvas de pontas metálicas tortas pelo uso (as mulheres portando o estampado de gosto duvidoso das frágeis sombrinhas compradas nos ambulantes) disputar poças d'água nas paradas de ônibus com os outros encasacados da cidade - sim, porque o casaco de brim desbotado e puído nas mangas tirado do guarda-roupa nos dias frios e chuvosos já é uma instituição da cidade, como o é a estátua de Castro Alves, o acarajé ou a sereia de Itapuã.

Esses dias passam nublados de um jeito que enche as pessoas duma tristeza pesada, que dá quase pra tocar, e que acaba convertendo-se numa apatia sem explicação que dura até o próximo pé-d'água, que vem lá pelo final do dia, quando a massa de encasacados tenta se deslocar de volta a suas casas... Nada demais... Mais guarda-chuvas (uns tantos deles com algumas pontas metálicas tortas a mais do que pela manhã) e mais poças d'água ainda, com o agravante da sensação de caos que sempre provoca nas pessoas a mistura de chuva, ruas com iluminação amarelo-pálido dos postes e buzinas mais cores vivas dos faróis dos carros.

A outra estação? É a das sextas-feiras... Explico: Já notaram como dias quentes de verão geralmente remetem às sextas-feiras? Mais particularmente àquele finalzinho de expediente, em que se alinhava as últimas e descabidas tarefas do dia (afinal, isso lá é dia ou hora de se resolver pendências?) ao tempo em que se torce - olhando o resto de sol e a beleza da tarde pela janela - pra que o telefone não toque? Imagina uma chamada da diretoria marcando uma reunião de última hora... Nem é bom pensar... é provável até que atraia, sabe-se lá! Daí, findo o expediente, é sair de frente pro ar fresco que o mar do Rio Vermelho traz, respirando a atmosfera boêmia que só a minha Salvador tem (ou ao menos parte dela... a antiga, cheia de classe e bossa, dos velhos notívagos boêmios). É como se só soteropolitanos, que realmente vivem as poucas horas de final de tarde/início de noite da cidade, tivessem plena consciência da intensidade que é o sorriso despreocupado dado pro desconhecido do lado no caminho do boteco depois do final de uma semana estressante... ou a rápida e sadia olhadela pros atributos da mulata rebolativa, fogosa e insinuante que passa logo ali, com a leveza do andar típica dos de minha terra (tá... às vezes não tão rápida assim, em se tratando de Salvador, de uma mulata e de seus generosos atributos...).

Em que outro lugar, senão em Salvador, faria sentido atribuir à força da magia dos orixás o fato de, por pura homenagem, tanta gente se vestir por inteiro (alma incluída) de branco como quem pede benção? É aqui que as praças são feitas de pedras calçadas. E as praças do Rio Vermelho em particular, como que calçadas e unidas pelo azeite, cujo aroma já inebria de longe a quem vem. E sim... nós viemos! Quer ali pra baiana, onde o assunto da discussão importa menos que a temperatura da cerveja ou a quantidade de pimenta no acarajé, ou pro Mercado, palco de tantos destes artistas anônimos, malabaristas, músicos, mágicos, poetas ou só passantes, que ficam por ali, fauna característica do bairro, oferecendo seus préstimos ou só mendigando um trago ou um dos caldinhos de sururu do boteco de Titela. É o tipo de lugar onde quem é baiano se sente em casa, e quem não teve a sorte vira baiano por merecimento. Afinal, se está no Rio Vermelho, rendendo graças aos orixás. E é sexta-feira...

E, na estação das sextas-feiras,
toda sexta-feira
todo o mundo é baiano
junto.

O texto foi quase todo escrito com a letra desta balada simples e bela na voz gostosa da Bellô Veloso na cabeça.