quarta-feira, maio 24, 2006

A primavera de Luis

Luis acordou cedo, e trazia nos olhos uma alegria nunca vista pelo seu espelho. Cantarolou uma canção antiga embaixo do chuveiro, enquanto lá fora, setembro fazia seu primeiro domingo de primavera. O sol das oito anunciava força se derramando pelo muro branco para dentro do quintal florido. Beija-flores e borboletas faziam vida em sobrevôos leves por entre girassóis e gardênias perdidas. Saiu do banho e ficou ali, na janela em que passava aquele filme bom. Com o pensamento longe, sorria com os olhos. Despertou ao som do cuco rouco de seu relógio antigo, e aviou em se arrumar. Luis vestiu-se à domingo, e embebido em colônia saltou para a rua antes das dez. Estava feliz. Seguiu pelo passeio dono de um sorriso de bocas mil. A cada coisa, e pessoa, um olhar e sorrisos ímpares. Recebia de volta mais surpresa que recíproca. Não era de praxe andar assim o Luis, comentava-se em boca miúda. O que haveria de ter mudado seu ar casmurro e taciturno? Até seu andar mudara; o passo tétrico de ontem, era o serelepe de hoje. Falou-se numa outra rua, num desses clubes de esquina onde senhores de língua solta fazem correr os ponteiros do dia, que Luis assoviava uma canção alegre ao passar ali. O vestir também era outro, pois trocara o desleixo pelo desvelo, e as camisas rotas de outros dias, tinham agora um colorido de alegria primaveril. Os cabelos penteados em simetria, e uns bigodes bem aparados, ornavam um rosto que o passado negava aos olhos. Era outro Luis. Um olhar mais atento o teria visto parar em frente à florista - a mesma a quem sequer olhava antes, ou, o fazia com desprezo quando - dar-lhe um sonoro bom dia, escolher um lindo buquê de flores do campo, pagar e deixar-lhe um bom troco como gorjeta. E seguiu rua afora, sob um sol gracioso de domingo, o novo Luis. Cruzou o centro da cidade, sempre visto por olhos atônitos e foi dar na rua da praia. No calçadão o vento forte dava boas vindas, e o cheiro do mar misturou-se ao de Luis com seu buquê. Um ouvido mais afiado, por certo, escutaria o rufar do tambor que ia em seu peito àquele instante, a boca seca, a ansiedade aflorada.

No último banco da orla, uma senhora de rosto moreno, cabelos brancos presos num coque, estava acomodada. O morador da casa à frente diria que ela havia chegado junto com o sol àquela manhã. Trazia no semblante um peso de ânsias mil, e não se sentou antes de uma hora. Andou em círculos por um bom par de minutos, e o movimentos das mãos denunciavam-lhe as tormentas internas. De jeito simples, num vestido longo de pequenas flores na estampa, a senhora tinha um ar recatado e triste. Seu dia seria intenso, sabia. Dali a algumas voltas do ponteiro maior a vida iria mudar, de uma forma parecida com algo já vivido em anos idos. Sentada à beira-mar, tinha aproveitado o conselheiro e seus respingos ao máximo desde cedo. Trazia em mente um texto inteiro para usar no tal encontro, ou, reencontro? Colocara cada vírgula, e ponto, no seu devido lugar. Ordenara as justificativas todas, como roupas num armário. Tinha todas as respostas para as possíveis perguntas, e a mais plausível para a mais importante: por que?. E seu relógio não andava. E foi que um vento mais forte lhe trouxe um cheiro, algo nunca sentido, e mesmo assim muito seu. E nada lhe fez girar o pescoço noutra direção que não a do mar. Era o medo.

Luis apressou o passo, seus olhos curiosos já não viam os olhares alheios, posto que só miravam o fim da orla em busca do último banco. A alegria do começo da rua, já trocara de lugar com a tensão. Rufar no peito. Suor nas mãos. Rememorava o texto que iria usar; todas as perguntas das quais queria respostas plausíveis, e da principal: por que?. E foi que um vento distraído lhe trouxe um cheiro, algo nunca sentido, e mesmo assim, só seu. A poucos metros viu a cabeleira branca entre os galhos de uma árvore baixa, quis desistir, sentiu ódio, parou, girou, deu um passo, parou, voltou. Foi parar atrás da senhora sentada no último banco da orla, que distraída com o mar não o viu chegar, apesar do forte cheiro de suas lembranças. Tossiu para ser notado, e o foi. A senhora desistiu de olhar o mar, e olhou pra trás buscando o dono daquele pigarro. E dois olhares atônitos se encontraram mudos. E como autômatos se aproximaram. O buquê de flores do campo rumou ao chão em câmera lenta, as mãos dela o procuraram tateando o ar; e um abraço tomou o lugar dos textos, e um ouvido mais afiado diria terem dito:

“filho?...”

“mãe!...”

“eu amo você”...

“também te amo, mãe!...”
Este texto nasceu antes do dia das Mães, mas, sabe-se lá por que não foi postado antes. Porém, como diz um clichê vigente, todo dia é dia Delas.