terça-feira, julho 11, 2006

Mais com menos

E fosse chuva, dezembro ou carnaval, o menino estava lá. Chegava cedo, vindo não se sabe de onde. Certo é que chegava. O traje mesmo de cada dia, calção roto, camisa puída, olhar de senão. Seu porte mirrado não se deixava levar pelas provocações dos maiores, se impunha, sempre. Certos carros modernos, de tão altos, lhe dificultavam o acesso. Mas era certo, no fim de cada dia, sobrar um trocado, e a barriga enganada. Noitinha feita, sumia o menino pela larga avenida para só voltar no outro dia.

Então veio um julho de chuva, e uma certa manhã sua. O menino tremia encobrindo as mãos com a camisa mesma. Já passava das dez, e todos os carros acharam por bem não abrir seus vidros. A fome foi aumentando. Amigos do lado recorreram ao “lírio”, mas o menino não quis. Veio um carrão, parou. Ele estendeu a mão dormente e fria, e levou um grito, e um safanão. Recolheu-se triste num canto. Tempinho depois, voltou. Parou outro carrão. Repetiu-se a cena, mas, invés de safanão, alguém lhe acariciou a cabeça, e disse não ter uns trocados. O menino voltou pro seu canto, mas levou no rosto um sorriso de prato cheio. Chegou a hora do pseudo-almoço, e nada de pingar uns trocados. Arriscou num último carro. Uma senhora com cara de vovó parou, abaixou o vidro, e disse ternamente:

“oh, meu querido, desculpe, mas não tenho nenhuma moedinha, aqui...”

E ele replicou:

“ah, vó... então passa a mão na minha cabeça...”

5 comentários:

Anônimo disse...

Lembrou-me um dia que minha irmã saindo do Teatro, noite alta, dia de inverno, passaram dois pequenos e friorentos, semi despidos em pés desnudos, pedintes. Ela se doeu toda e achou moeda insuficiente pra tal encontro. Correu a minha casa e recolheu sapatos e agasalhos de meus filhos (pois os dela não lhes caberiam). Entrou no Mac e escolheu gordos e atrativos manjares. Voltou ao teatro plena madrugada e feliz de ver, por um instante que durasse, a alegria de quem recebe tão pouco da vida.
Tua história dói nossa consciência de sermos iguais com tanta desigualdade.

A czarina das quinquilharias disse...

é outro tipo de fome, que trocado não satisfaz...

Fábio Farias disse...

Sem palavras. :)

Crica B disse...

Lindo texto, às vezes tão pouco representa tanto para alguém... e muitas vezes esquecemos de olhar nos olhos, sorrir, fazer um afago.
:(

Leonardo Caldas disse...

e pensar que, por essa bobas razões mundanas, passei tanto tempo sem vir aqui pra saciar minha outra fome...

belo, múcio.