terça-feira, julho 18, 2006

O Luciano

O Luciano era um cara estranho... no colégio particular em que ele e mais outro tanto de pré-adolescentes filhos de classe média estudavam sempre era aquele menino que não fazia parte de nenhuma turma. Era solenemene ignorado pelo pessoal descolado. Afinal, com aquele visual "camisa-pra-dentro-da-calça" e tênis antiquados, sem falar da postura, mais antiquada ainda, passaria sempre longe dos ícones de popularidade do colégio. Com os CDFs, por outro lado, tinha uma relação um pouco mais amigável, ainda que fria. Apesar do rendimento medíocre na maior parte das disciplinas, o Luciano escrevia extremamente bem (ou pelo menos era o que dizia o professor de Redação, um dos poucos que sabia seu nome, e ao qual os alunos em geral não davam lá muita atenção) e tinha notas invariavelmente altas em História, Geografia e Literatura. Isso o aproximava um pouco da turma que disputava praticamente aos tapas os assentos mais próximos do professor, ainda que ele próprio sentasse sempre sozinho no fundo da sala. Às vezes era mesmo confundido com um dos bagunceiros; grupo animado e propenso a brincadeiras fora de hora, sempre ali pelo fundo dando trabalho a professores e coordenadores. Mas uma olhada um pouco mais atenta permitiria logo perceber que aquele menino magro, de olhar tristonho e cabeça sempre baixa definitivamente não tinha o perfil de alguém que bagunçasse numa sala de aula. Na verdade, de alguém que já houvesse bagunçado onde quer que fosse alguma vez na vida.

Mas lá vinha o Luciano, o velho walkman já meio arrebentado na mochila, escutando no ônibus a caminho da escola a fita cassete que acabara de gravar... Era de uma banda estranha. Uns sujeitos que falavam dos males do mundo, mas que o faziam por meio de um som tão melodioso e agradável que era prazeroso ouvi-los. As letras das músicas, em Inglês, ele havia conseguido aqui e ali, já sabia quase todas decoradas. Eram estranhas... depressivas muitas delas... mas faziam pensar... igual ao livro que lia agora, cheio de anotações e pedaços de papel de caderno marcando os trechos mais importantes. Nele alguém explicava, numa linguagem às vezes complexa demais pra uma cabeça de 15 anos que mal começara a desvendar o mundo, que a liberdade é, no final das contas, um fardo cujo peso aqueles que em algum momento de suas vidas davam-se conta da existência, tinham de carregar. O Luciano já havia lido dezenas de vezes este trecho. E lia uma vez mais agora... e já se pegara pensando algumas vezes se afinal seria vantajoso ser livre, ou se o melhor - e menos doloroso - seria a vidinha de todo dia, tentando a todo custo criar laços afetivos com quem nem mesmo o queria perto. Fechou o livro vagarosamente, tirou os fones e olhou com ar distraído pela janela. Aquela gente dos livros que pegava com frequência na biblioteca vivia falando dum mundo enorme, tão cheio de complexidade. E ele, o Luciano, queria tanto poder falar com quem quer que fosse sobre as coisas que lia, escutava e adivinhava... Sim, porque muitas das idéias que tinha eram mais adivinhadas que lidas. Vinham assim, chegando meio como quem não quer nada, e quando o Luciano menos esperava, ele simplesmente "sabia" como as coisas eram. É que agora, enquanto via aquele mundo de rostos sem expressão indo e vindo logo ali fora, ao alcance duma janela, sentia uma necessidade desesperadora de buscar alento no outro... fosse o outro o pai... o melhor amigo... ou mesmo o professor de Redação a quem ninguém dava tanta atenção.

Mas era um alento que, apesar de tão novo, o Luciano já tinha plena consciência de que não teria. Acostumara-se já ao risinho condescendente da professora de educação religiosa (disciplina teoricamente importante no colégio católico em que estudava) quando tentara por algumas vezes expor suas dúvidas e incertezas. Da mesma forma como acostumara-se ao gosto amargo das negativas das meninas por quem as paixões juvenis fizeram o coração bater um pouco mais forte, cheio de sonhos. No início ainda sentia um calor subindo-lhe pelo rosto e avermelhando as bochechas quando, durante a formação de equipes para os trabalhos escolares, percebia de um a um os colegas sendo escolhidos e ele, o Luciano, sempre ali, entre os últimos (muitas das vezes "o" último). Já desistira dos esportes... era sempre o mais espancado em todos os que tentava tomar parte. E isso sem falar da zombaria morna do dia-a-dia por causa das músicas que escutava... dos livros que lia... das coisas que - cada vez menos - dizia...

Enfim... em alguns minutos o Luciano desceria do ônibus. E, como em todos os outros dias, começa a lhe subir o mesmo calor pelo corpo, o mesmo afoguear nas bochechas. E era sempre como se ele saísse - cada vez menos à vontade por ter de fazê-lo - do mundo admirável dessa gente que parecia oferecer respostas a todas as suas inseguranças e angústias, pra entrar em um em que não o entendiam, nem tampouco aceitavam. É... o Luciano é mesmo um cara muito estranho!

5 comentários:

Anônimo disse...

Gostei muito de ler o teu texto...Reconheci nele alguns jovens adolescentes parecidos com o Luciano... Que gostam de Literatura e História... Não são estranhos...São diferentes... E têm uma sensibilidade muito grande... Estou a pensar num desses meninos em particular... Ainda hoje, já crescido, gosta de ler e escrever e contar histórias... E como o faz bem!

Cristina :)

Diógenes Pacheco disse...

Eu sei de cátedra o que é isso. Tive fases, nas minhas mudanças...
Em perspectiva, sei que tudo ensina, para quem não se deixa abater.
E é um aprendizado valioso.

[]´s

mg6es disse...

há que ser forte, qd se é diferente, nesse mundo tao cheio de iguais.

Grande, Leo.

[]´s

Vinicius disse...

poxa Léo, colocar minha vida no blog não vale né?

Tô brincando cara, mas o texto reflete muito o que eu fui um dia, as coisas que sentia, o que ouvia e lia.

Ser diferente tem dessas coisa!

Excelente, como sempre, o texto!

Crica B disse...

O engraçado é que eu fui tão diferente do Luciano mas identifico os muitos Lucianos que conheci na escola. Alguns deles eu trago comigo até hoje.