sábado, julho 15, 2006

Um caso de acaso

Mais um gole de vinho em minha taça, para apreciar o espetáculo. Ela dormindo. O corpo miúdo encolhido na grande cama de casal. Dorme em posição de concha, minha menina. Suas pérolas castanhas escondidas sob as pálpebras. Os cabelos longos e vibrantes, ainda acordados, espalhados. O peito subindo e descendo num ritmo regular, lento.

E eu ali, mero expectador, sentado na beirada da cama. O rosto vermelho, o corpo quente como quando com febre, taça de vinho na mão e um sorriso estúpido no rosto. Fazia tempo que a gente se conhecia, pensei tomando o último gole da bebida e pegando um maço de cigarros no bolso da camisa que estava no chão, aos meus pés. Era um dia parado, daqueles em que você não quer fazer nada a não ser tragar alguma esperança alheia. Olhei para o cigarro em minhas mãos com reprovação. Ela odiava quando eu fumava, exceto quando estava lendo. Aí não se importava com nada! Os pensamentos voaram para aquela tarde chuvosa de quarta feira de quando a gente se conheceu.

Lá estava eu, cigarro na boca e ausência de sapato nos pés. Ela estava sentada num banco de esquina, lendo. Passava constantemente a mão na nuca, levantava os cabelos, se encolhia de frio. E eu só pensava como diabos uma pessoa conseguia ler assim, tão incomodada com o clima ou algo mais. Parei. Sentei. Perguntei. Fui completamente ignorado. Ela nem sequer olhara para mim ou para meus pés descalços.

Olhando mais de perto, tinha os olhos vidrados na leitura. O resto do corpo havia se desprendido dos olhos, da parte do cérebro que absorvia aquelas palavras miúdas numa página amarelada. O resto do corpo se importava com o frio, com o tempo nublado, com a posição desconfortável num banco de praça. Mas não aqueles olhos. Eu só observava admirado, até que uma neblina inconveniente começou a cair. Quando a primeira gota caiu certeira na página que ela lia, a adorável desconhecida deu um pulo que, admito, me assustou. Eu, pobre inocente, caí do banco de susto, justo com a bunda no chão. Meu cigarro, também caído, jazia encharcado numa poça d’água. Senti-me mal com o afogamento. Por muitos anos o cigarro tinha sido meu maior amigo. Olhei para ela, ressentido. Tudo em mim gritava “assassina”. Ela devolveu o olhar, com uma expressão culpada.

Parou em frente a mim, perguntado se estava tudo bem e estendendo a mão para eu levantar. Sua voz ecoou por alguns segundos em meus ouvidos. A chuva engrossava e ficava difícil ouvir. Fiquei atordoado, completamente mudo: um inútil sentado no chão. Ela suspirou, meio impaciente. Escondia o livro por baixo da blusa de algum tecido grosso que não sei o nome. “Vem”, chamou segurando minha mão, “Eu te pago um café”. Esqueci de dizer que cafeína era o que eu menos precisava, graças às minhas noites insones, até ser arrastado para uma confeitaria próxima.

Sentamos, molhados. Ela sorridente. Eu ainda mudo. “Então, qual é o seu nome?”, ouvi. “Eu... Hm... Ah...”, respondi. “Tudo bem, esquece. Isso não importa. A gente provavelmente nunca mais vai se ver mesmo”. “É Jonas”.

7 comentários:

Crica B disse...

O inesperado e o acaso sempre reservam surpresas maravilhosas.

:-)

mg6es disse...

fora de casa, o acaso, é um caso, sério.

Belo texto!

[]´s

A czarina das quinquilharias disse...

de distraida ela não tinha nadinha...
gostei muito, palmas!!!

Leonardo Caldas disse...

gostei muito, particularmente pq me remeteu a uma cena de um tempão atrás, com alguém que já foi um bocado importante (bom... a cena não foi exatamente assim... mas que importa, já que os olhos vidrados e bonitos eram?)

muito bom... gostei um bocado do que li! :)

Diógenes Pacheco disse...

Boa história, com gostinho de lembrança, cores de tecnicolor.

[]´s

Anônimo disse...

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